Ira masculina e misoginia são fatores na ascensão do populismo
As explicações mais frequentes da ascensão do populismo citam a desigualdade e o racismo. Mas a tempestade em torno da indicação de Brett Kavanaugh à Suprema Corte dos Estados Unidos aponta para um terceiro fator: a ira masculina.
Os papéis de gênero tradicionais estão sendo desafiados, levando muitos homens a recear uma perda de poder e status. Esse medo se evidencia no tom misógino de movimentos populistas nos Estados Unidos, Brasil, Filipinas, Itália e outros países.
A reação masculina é expressa não apenas em discussões relativamente civilizadas sobre as mulheres no trabalho ou papéis de gênero no âmbito doméstico. Como evidenciaram as audiências de Kavanaugh, ela passa rapidamente para o tópico mais explosivo de todos, aquele que suscita mais emoção: violência sexual.
Rodrigo Duterte, o presidente das Filipinas, e o candidato presidencial brasileiro Jair Bolsonaro, primeiro colocado nas pesquisas para a eleição que terá lugar este mês, incorporaram insultos provocantes sobre estupro a seu discurso político. Matteo Salvini, a figura dominante no governo italiano, usou calúnias sexuais para humilhar políticas mulheres.
Bolsonaro declarou que a política brasileira Maria do Rosário “não merecia ser estuprada, ela é muito feia”. Mais de 3 milhões de mulheres formaram um grupo online para se opor à candidatura dele, sob a hashtag #EleNão. Com o primeiro turno da eleição marcado para 7 de outubro, centenas de milhares de mulheres acabam de participar de protestos contra Bolsonaro nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Rodrigo Duterte certa vez aludiu em tom de brincadeira ao estupro coletivo e assassinato de uma missionária australiana, sugerindo que, pelo fato de ele na época ser prefeito da cidade onde isso ocorreu, deveria ter podido ser o primeiro a estuprá-la. O presidente dos EUA, Donald Trump, disse desde então que tem um “grande relacionamento” com o líder filipino.
Matteo Salvini, o vice-primeiro-ministro italiano e admirador de Trump, também já zombou de políticas mulheres e as insultou. Em um comício em 2016, ele apontou para uma boneca sexual sobre o palco e disse que ela era sósia de Laura Boldrini, então presidente da Câmara dos Deputados italiana. Em entrevista recente à “Politico”, Boldrini disse que nos últimos anos recebeu muitas ameaças de estupro e morte e que os populistas italianos a atacaram porque “eu sou mulher e estava defendendo os refugiados, os direitos humanos, os direitos das mulheres”.
Como sugere Boldrini, o uso de um discurso misógino que visa humilhar e amesquinhar parece ser uma resposta direta à ascensão de políticas mulheres poderosas. É sugestivo o fato de Bolsonaro ter ganho destaque imediatamente após a presidência de Dilma Rousseff, a primeira mulher a presidir o Brasil. E Trump, é claro, teve como adversário na eleição Hillary Clinton, que, se tivesse ganho, teria se tornado a primeira mulher a ser presidente dos EUA.
Pelos padrões corrompidos de Duterte, Salvini e Bolsonaro, o discurso misógino de Donald Trump é relativamente contido. Mas pode ter servido a uma finalidade política semelhante: transmitir aos eleitores homens irados a mensagem de que o presidente está do lado deles.
Os comentaristas convencionais, incluindo republicanos destacados, imaginaram que a declaração de Trump sobre agarrar mulheres “pela xoxota” o prejudicaria na corrida presidencial. Mas é provável que alguns homens tenham apreciado seu discurso machista, que rompeu tabus. No final, 53% dos homens americanos (e 62% dos homens brancos) votaram em Trump.
A presidência dele vem coincidindo com o movimento #MeToo contra o assédio sexual, que pôs fim à carreira de alguns homens poderosos em Hollywood, na mídia, no mundo dos negócios e na política.
Mas a ascensão do #MeToo pode também ter fortalecido a reação masculina que alimenta o populismo. O senador Lindsey Graham, um dos defensores mais acirrados de Kavanaugh, aderiu em cheio ao discurso de vitimação quando declarou, durante a audiência de confirmação do juiz: “Sou um homem branco e solteiro da Carolina do Sul e me dizem que eu devia calar a boca. Mas não vou me calar”.
Muitos democratas agora se tranquilizam um pouco pensando que, mesmo que Brett Kavanaugh venha a ser confirmado para a Suprema Corte, a controvérsia acabará tendo efeito negativo sobre os republicanos nas eleições parlamentares deste ano. Uma pesquisa recente sugeriu que as mulheres brancas hoje favorecem candidatos democratas por uma margem de 12 pontos percentuais.
Mas alguns republicanos acreditam que as audiências de Kavanaugh também possa beneficiá-los, mobilizando os eleitores homens. James Robbins, ex-funcionário da administração George W. Bush, avisou os homens que “se os democratas ganharem em relação a Kavanaugh ... qualquer homem pode ser confrontado com acusações impossíveis de ser comprovadas e que serão automaticamente aceitas como verídicas”.
Alguma preocupação com as implicações do #MeToo também vem sendo manifestada em redutos da América liberal. Nas últimas semanas a Harper’s e a New York Review of Books publicaram artigos angustiados de homens que perderam sua carreira profissional depois de várias acusações de tratamento injusto a mulheres. Ian Buruma, o editor da New York Review of Books, perdeu seu emprego no furor subsequente.
Essas controvérsias nos círculos literários americanos são insignificantes em comparação com o drama das audiências de Kavanaugh —ou da brutalidade machista da política na Itália ou Filipinas. Mas elas destacam o poder de polarização dos debates de gênero na política e na sociedade. E, se existe alguma coisa que alimente o populismo, é a ira e a polarização.
Tradução de Clara Allain