Jeferson De roda filme sobre Luiz Gama, ex-escravo que libertou 500 pessoas

De frente para um quadro de Kerry James Marshall, famoso por incorporar elementos da cultura afro-americana em suas obras, o cineasta paulista Jeferson De só conseguia ver uma tela preta. Dali a pouco, suas pupilas começaram a distinguir figuras de pessoas desenhadas ali.

O diretor quer traduzir essa mesma experiência no cinema, mergulhando o espectador dentro de um dos horrores mais indizíveis da história. 

Vai filmar o drama de um menino negro espremido no porão de um navio negreiro. “Os espectadores vão entrar na sala escura e enxergar pessoas negras no escuro”, afirma.

Desse terror ele quer ver emergir o herói de “Prisioneiro da Liberdade”, drama biográfico sobre o líder abolicionista Luiz Gama, que começará a ser rodado em janeiro. 

Vendido como escravo pelo pai, aos dez anos de idade, e analfabeto até os 17, o baiano se alforriou e se tornou poeta, jornalista, chargista, advogado, teórico antimonarquista e, claro, ícone da abolição. 

“O cinema brasileiro mostrou a participação negra na música, no esporte, na religião, mas não a nossa contribuição intelectual”, diz De, enumerando uma série do que ele chama de anti-heróis plasmados nas telas —Xica da Silva, Zumbi dos Palmares, Macunaíma, Zé Pequeno, Madame Satã, Ganga Zumba. “Mas nenhum agindo dentro da lei.” 

Gama usou o direito e a sua oratória para libertar mais de 500 escravos na São Paulo do século 19. Ajudou a desacorrentar gente vendida após a proibição do tráfico negreiro e defendeu aqueles que, mesmo podendo pagar a alforria, eram tolhidos da liberdade por seus senhores. Morreu seis anos antes da Lei Áurea e foi sepultado num cortejo fúnebre que parou a cidade. 

Fabrício Boliveira, recém-saído da novela “Segundo Sol”, viverá o protagonista. O ator irá gastar a sola de suas botas nas ruas de pedra de Paraty, cidade do litoral fluminense que fará as vezes da então capital da província paulista. 

É lá que o diretor irá recriar a centenária rua São Bento, que liga o mosteiro de mesmo nome ao largo São Francisco, onde Gama estudou como ouvinte —negro entre uma multidão de brancos, os filhos de fazendeiros alunos da recém-criada faculdade de direito. 

O filme vai mostrar chicote, açoite, mas sem “passar do ponto e virar sangueira fora de lugar”, segundo o diretor. “É quase pro pessoal do ensino médio. Pra que vejam antes de ‘Cidade de Deus’ e entendam por que a maioria daquelas crianças é negra e o que explica aquela violência.”

O protagonista tem trajetória para agradar tanto a direita quanto a esquerda, na opinião do cineasta. “Vale para o pessoal da meritocracia e para os que defendem cotas.”

O que pauta o roteiro é a pesquisa de Ligia Fonseca Ferreira, que defendeu na Sorbonne tese sobre o abolicionista. “As lacunas eu supro com coisas quase pessoais, como se fosse a minha vida em 1850”, diz o diretor de 50 anos, que moldou uma carreira consistente abordando, na tela e fora dela, o que é a negritude no Brasil. 

Lançou, em 2000, o manifesto Dogma Feijoada, atualizando o debate sobre a imagem do negro no cinema nacional, e dirigiu curta sobre Carolina Maria de Jesus, ex-catadora de papel que virou escritora. “Bróder”, seu primeiro longa, fala de divisões raciais no Capão Redondo, bairro da periferia paulistana. Seu último longa, “Correndo Atrás” é uma comédia com elenco quase todo negro.

“Não consigo pensar na minha experiência brasileira sem pensar na escravidão”, diz o cineasta, que suprimiu seus sobrenomes, exceto a preposição de “de Rezende”. “Rezende não me explica, mas o De vem da ideia de pertencer a alguém ou a algum lugar.”

Contracenando com Boliveira estarão Zezé Motta, Sidney Santiago, Isabél Zuaa e Mariana Nunes. Atrás das câmeras, vários dos cargos de chefia na equipe técnica devem ficar nas mãos de negros. 

“Quando se olha os créditos finais de um filme sempre tem o Carlão, o Chicão, o Zezão, tudo preto servindo como motorista e tal. Quero no começo dos créditos gente com essa mesma ancestralidade.”

De é uma exceção num país em que a maioria da população é não branca. Relatório da Agência Nacional do Cinema, que foi divulgado em junho com dados de 2016, aponta que dos 142 longas brasileiros lançados naquele ano, só 2% tiveram diretores negros. Nenhum foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra. 

“Prisioneiro da Liberdade”  vai ser filmado no primeiro mês da gestão de Jair Bolsonaro, que como candidato afirmou ter visitado quilombos com pessoas de “mais de sete arrobas” e que “nem para procriador servem mais”. 

“Se ele for a meu set, verá um preto de quatro arrobas”, diz o diretor. “Foi uma frase desrespeitosa com meus irmãos quilombolas. Usou termo que não usaria para descrever os filhos ou a mãe dele.”
“Prisioneiro” engrossará uma onda que, nos Estados Unidos, já é revolucionária.

O Oscar, antes tão branco, se corrigiu premiando Viola Davis e Mahershala Ali. E Spike Lee, cronista das tensões raciais americanas, lançou “Infiltrado na Klan”, uma de suas produções mais elogiadas.

O cineasta brasileiro conta ter ficado “sem conseguir falar” após sessão em Miami do filme de Lee, sobre um policial negro que consegue ludibriar um líder da Ku Klux Klan. Também diz ter saído transformado depois de uma conversa com Barry Jenkins, diretor do oscarizado “Moonlight”. 

Mas a grande lição ele quer tirar de “Pantera Negra”, história sobre um super-herói africano que virou o blockbuster de maior bilheteria do ano.

“Foi um filme que me bateu de maneira incrível”, diz De, segurando um boneco do herói da Marvel —fica exposto junto a uma Barbie negra e entre fotos de Malcolm X e Michael Jackson em sua produtora, no centro de São Paulo.

O diretor admira a forma como a comunidade afro-americana se juntou para ver a obra de Ryan Coogler, em salas de bairros emblemáticos como o Harlem, em Nova York. “Achei lindo o país todo black”, diz. 

“Queria que tivesse rolezinhos para o ‘Prisioneiro’. Imagina aquela negrada toda indo pro shopping Cidade Jardim?”

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