Jornalistas investigam morte de repórteres na fronteira entre Equador e Colômbia
Uma equipe de jornalismo equatoriana foi sequestrada no dia 26 de março de 2018 por ex-guerrilheiros das Farc na fronteira com a Colômbia. Os jornalistas foram encontrados mortos três meses mais tarde. Um grupo de 19 jornalistas equatorianos e colombianos, em parceria com a organização Forbidden Stories (Reportagens Proibidas), realizou uma investigação sobre a morte de seus colegas. Hoje, a Folha e 16 outros jornais internacionais estão publicando o resultado dessa investigação.
Um nome escrito à mão num livro de registros de hotel: Javier Ortega. Profissão: jornalista. Essa foi a última prova de vida deixada pelo repórter equatoriano de 32 anos do diário El Comercio na segunda-feira, 26 de março de 2018.
Ele foi captado às 7h10 pelas câmeras de vigilância quando saía do hotel El Pedregal, no noroeste do Equador, acompanhado pelo fotógrafo Paúl Rivas, 45, e do motorista deles, Efraín Segarra, 60. Estavam indo para Mataje, o último povoado antes da fronteira colombiana.
Três meses mais tarde as Forças Especiais colombianas encontraram seus corpos crivados de balas na região de Nariño, na Colômbia, onde operam vários grupos de narcotraficantes. Os assassinos cavaram duas sepulturas, nas quais deixaram cinco minas terrestres antipessoal ativadas, para causar danos quando soldados viessem recuperar os corpos.
Foi o episódio final de uma tragédia que devastou a sociedade equatoriana. O slogan #nosfaltan3 se espalhou pelas redes sociais e as ruas da capital equatoriana, Quito. Nunca antes um jornalista havia sido sequestrado e assassinado no Equador.
Equador, ponto de passagem na exportação de cocaína ao mundo
“Falei a Paúl: ‘Não vá desta vez, por favor! É perigoso demais’”, recorda Yadira Aguagallo, a companheira do fotógrafo Paúl Rivas. Três soldados haviam sido mortos e um ficara ferido seis dias antes na explosão de uma bomba de fabricação caseira em Mataje. Tinha sido o incidente mais recente numa onda de violência que sacudiu a província de Esmeraldas, na fronteira com a Colômbia, nos meses anteriores.
As autoridades atribuíam essa série de ataques a um homem: Walther Patricio Arizala Vernaza, também conhecido como “El Guacho”. Com apenas 28 anos de idade e tendo sido desconhecido das autoridades até poucos meses antes, ele em pouco tempo se tornou o inimigo público número um. Acredita-se que esse ex-guerrilheiro das Farc seja o líder de um grupo de 120 homens armados –a Frente Oliver Sinisterra.
Desde o acordo de paz firmado entre o governo colombiano e as Farc em novembro de 2016, cerca de 1.800 guerrilheiros dissidentes criaram uma dúzia de grupos armados. Esses grupos são acusados de trabalhar em parceria com os cartéis do narcotráfico mexicanos.
“A partir do momento que as folhas de coca são transformadas em cocaína na Colômbia, a droga é contrabandeada para o Equador, onde é armazenada e então transportada para a América Central ou os EUA”, explica o promotor Christian Rivadeneira, da região de Esmeraldas.
“Por que esse tópico é tabu?”, indaga o coronel Mario Pazmiño, que foi diretor dos Serviços Equatorianos de Inteligência Militar entre 2007 e 2008. “Porque ele mostra ao público nacional e internacional que essa fronteira está fora de controle.”
Foi para cobrir as consequências dessa guerra das drogas que Javier Ortega e seus dois colegas foram para o povoado de Mataje, na fronteira entre os dois países, em 26 de março. É sabido que essa área é controlada pelos homens de El Guacho. Às 9h30, eles atravessam a última barricada militar, a poucos quilômetros do povoado. É ali que os perdemos de vista, até o dia 3 de abril.
Um vídeo transmitido pelo canal de TV colombiano RCN mostra os jornalistas acorrentados, com expressão de desespero no rosto. Javier Ortega faz uma súplica ao presidente equatoriano, Lenín Moreno: “Nossa vida está em suas mãos”. E ele confirma o que todos temiam: que eles foram sequestrados pelo bando de El Guacho.
É nossa vez de ir para lá, com o Exército, em 2 de agosto. Duas estradas de asfalto precárias, casas feitas de blocos de concreto, crianças brincando em seus uniformes escolares, e a algumas centenas de metros, do outro lado do rio que marca a fronteira, campos de coca.
Aqui não há controle permanente da ponte que leva à Colômbia, deixando o caminho aberto aos narcotraficantes. Um imóvel novo em folha se destaca no meio do povoado abandonado pelas autoridades. “É a casa da mãe de El Guacho”, explica o coronel Rodriguez, que nos acompanha.
O carro dos jornalistas foi encontrado a algumas dezenas de metros de distância. “A casa está desocupada, mas consta que El Guacho passa por aqui regularmente”, ele prossegue.
Não nos deixam sair do veículo para conversar com os moradores. Alguns minutos depois, alto-falantes espalhados pelo povoado começam a tocar reggaeton. É um sinal enviado ao outro lado da fronteira para informá-los de nossa presença.
Uma pessoa aceitou falar conosco sobre o que aconteceu em Mataje no dia do sequestro. Victor Hugo Guerrero Quiñónez lecionou na escola primária da vila por dois anos até ser obrigado a abandonar seu emprego durante a onda de ataques. Ele colheu relatos de testemunhas oculares entre seus antigos alunos e colegas.
“Eles estacionaram o carro e tentaram fazer algumas perguntas aos moradores”, Quiñónez conta. “Mas o pessoal daqui não gosta de falar. Perguntaram a algumas crianças onde ficava a ponte que leva à Colômbia. As crianças lhes disseram, e então eles sumiram.”
Questionado sobre isso numa coletiva de imprensa em 19 de julho, o ministro da Defesa, Oswaldo Jarrín, negou que os jornalistas tivessem sido sequestrados em solo equatoriano.
“Querem colocar a culpa na Colômbia”, reclama Cristian Segarra, filho do motorista dos jornalistas, Efraín Segarra. Há meses as famílias das vítimas vêm criticando o amadorismo do governo de Quito, que responsabilizam pela morte de seus entes queridos.
Libertação anunciada
Conversas no WhatsApp entre El Guacho e um oficial de alto escalão da polícia equatoriana, cujas transcrições foram entregues aos tribunais, sugerem que as autoridades tinham consciência do perigo crescente para civis.
Em 16 de março de 2018, dez dias antes do sequestro dos jornalistas, El Guacho escreve: “Se pegarmos civis na fronteira, vamos matá-los”.
“Algumas horas apenas antes de Javier e sua equipe entrarem em Mataje, o acesso foi proibido a jornalistas”, explica o editor chefe do El Comercio, Geovanny Tipanluisa. “Mas os soldados os deixaram passar.”
Apesar de nossos pedidos, o governo não respondeu às nossas perguntas.
E se os reféns pudessem ter sido libertados? Às 21h35 do dia 28 de março o El Tiempo, um dos jornais mais respeitados da Colômbia, anuncia que os jornalistas foram entregues às autoridades equatorianas em boas condições de saúde.
“Todo o mundo aqui estava chorando. Foi uma alegria incrível!”, recorda Geovanny Tipanluisa.
Segundo uma fonte judicial, por volta das 18h é dada uma ordem para um helicóptero militar ficar de prontidão para receber os reféns em San Lorenzo, Equador. Em seguida eles devem ser levados ao aeroporto da cidade de Tachina, de onde um avião deve conduzi-los a Quito.
Segundo as informações que recebemos, na mesma noite o ministro da Defesa colombiano da época, Luis Carlos Villegas, ligou para seu colega equatoriano Patricio Zambrano para congratulá-lo pela libertação dos jornalistas.
Entrevistado em 28 de setembro, Zambrano confirmou o telefonema, mas negou que o plano de buscar os reféns tivesse sido ativado. Ele acrescentou: “A única notícia que ouvimos foi a do artigo do El Tiempo (...), que foi uma informação falsa.”
O que realmente aconteceu na noite de 28 de março? “Acho que essa pergunta vai me acompanhar pelo resto da vida”, fala Cristian Segarra.
Em 11 de abril, a frente Oliver Sinisterra divulgou um comunicado à imprensa anunciando o assassinato dos três funcionários do El Comercio. Várias pessoas próximas a El Guacho foram presas e indiciadas na Colômbia, mas El Guacho permanece em liberdade.
“Me dói pensar que foi preciso haver um sequestro e um assassinato para começarmos a nos preocupar com o que acontece na fronteira”, lamenta Yadira Aguaguallo.
“Os governos colombiano e equatoriano carregam uma parte grande da responsabilidade pelo que aconteceu. A morte de Paúl, Javier e Efraín não pode ficar impune. Alguns silêncios são insustentáveis.”