Juiz de polêmica com Serena reaprendeu a falar para ter autoridade em quadra

Dia após dia, José Miguel Fernandes, que estava começando como tenista, e o pai dele apanhavam um amigo do adolescente, Carlos Ramos, para o percurso rumo ao clube de tênis, fora de Lisboa, em que os dois meninos treinavam durante horas.

Para Ramos, o esforço não deu resultado: embora fosse um tenista persistente, ele jamais se tornou espetacular.

Mas conhecia as regras e as respeitava, e por isso outras pessoas recomendaram que se tornasse árbitro. Por mais mediano que fosse em quadra, quando sentado 2,5 metros acima dela, na cadeira do árbitro, Ramos era visto como excelente.

"Nós sabíamos que ele não era bom [em quadra]", disse Fernandes, recordando o backhand nada efetivo que o amigo executava com uma mão só. "E por isso recomendamos que ele fosse em frente com aquilo [a arbitragem]".

A decisão colocou Ramos, 47, em um caminho que, décadas mais tarde, resultaria em uma troca contenciosa de palavras com Serena Williams na final feminina do Aberto dos Estados Unidos, em setembro.

Ele se tornou aquilo que a maioria dos árbitros mais detesta ser: famoso, ou, na opinião de alguns, infame, depois de impor punições a Williams por receber instruções do treinador durante o jogo, pisotear a raquete e questionar sua integridade. As infrações custaram um game à tenista, em um jogo que ela perdeu para Naomi Osaka por 6-2, 6-4.

A disputa se tornou um ponto de referência para discussões complicadas sobre gênero, raça e a dinâmica do poder. Semanas depois, o assunto continua vivo, e a WTA (associação do tênis feminino) esta semana pediu que todos os torneios, incluindo os do Grand Slam, abandonem as penalidades às tenistas que recebam instruções dos treinadores, o que poria fim a qualquer confusão quanto a isso.

A trajetória de Ramos foi pouco discutida, no entanto. Seu percurso de tenista medíocre a árbitro de primeira linha exigiu que ele superasse um distúrbio de fala que, segundo seus mentores, poderia atrapalhar sua ascensão. Ele ganhou experiência em partidas de segunda linha, no circuito de tênis português, e desenvolveu uma reputação por rigidez, mesmo entre seus colegas árbitros.

Como outros árbitros profissionais de tênis, Ramos em geral não tem autorização para falar com a mídia. Por meio de um representante da Federação Internacional de Tênis, ele recusou um pedido de entrevista. O objetivo da regra é manter os árbitros fora dos holofotes. E Ramos os evita de qualquer forma, dizem alguns de seus amigos.

"Carlos não quer estar no aeroporto e ser reconhecido como o árbitro que teve problemas com Serena Williams", disse Fernandes. "Há quem goste disso, ele não".

Em lugar disso, Ramos passou boa parte de sua vida tentando passar despercebido e alimentar sua paixão pelo tênis e, ainda mais, pelas regras do esporte.
 
Ao contrário de muita gente que ascende no rarefeito ecossistema profissional do tênis, Ramos vem de origens relativamente modestas.

Nasceu em Moçambique, filho de um português que trabalhava como técnico de manutenção de aviões. Quando jovem, ele a família foram forçados a deixar o país depois que Moçambique conquistou a independência de Portugal, em 1975.

Eles recomeçaram do zero, se mudando para Agualva-Cacém, um subúrbio de classe operária perto de Lisboa, dominado por fileiras de blocos residenciais em forma de caixas de fósforo que por décadas receberam imigrantes vindos das antigas colônias portuguesas.

"Às vezes, os imigrantes que chegam mudam, mas o lugar nunca muda", diz Edivaldo Pereira, brasileiro que é dono de um bar frequentado por eles.

Quando criança, Ramos sonhava se tornar goleiro de futebol, dizem pessoas que o conheciam. Mas aos 11 anos, descobriu o tênis, em uma visita a Angola, e decidiu que gostaria de descobrir se tinha jeito para o esporte. Ramos, Fernandes e outras crianças locais treinavam no Clube de Tênis do Jamor, um complexo localizado no estuário do Tejo.

Ele tinha 16 anos quando deixou de lado o sonho de se tornar tenista e decidiu se dedicar à arbitragem, desenvolvendo uma personalidade muito mais assertiva, como árbitro, do que os modos discretos que adotava fora de quadra.

"Percebi que como jogador seria muito difícil chegar até onde eu queria", disse Ramos em uma entrevista ao jornal português Observador, em 2015. "Eu me interessava demais por idiomas, viagens, interagir com outros países e culturas. E isso era algo que eu não poderia ter, se continuasse como tenista. Na arbitragem, vi essa porta se abrir rapidamente".

Ramos completou os cursos nacionais de arbitragem e encontrou trabalho inicialmente nos muitos torneios menores que estavam surgindo em Portugal —desenvolvendo também, dizem colegas, um apego firme às regras.

Ramos parecia claramente um árbitro que deixaria para trás a cena local. Miguel Seabra, que trabalhou em companhia de Ramos naqueles anos antes de se tornar jornalista e comentarista de TV, o recorda como um adolescente disciplinado, que voltava cedo para casa quando os outros jovens árbitros saíam para jantar, beber e farrear.

Outro árbitro português, Jorge Dias, 56, foi mentor de Ramos e percebeu sua dedicação ainda cedo na carreira dele. Naqueles dias, Ramos tinha um distúrbio de fala, e Ramos lhe disse que isso poderia afetar sua autoridade em quadra.

"Dissemos que ele tinha de fazer algo a respeito", disse Dias. "Ele passou por uma cirurgia e aprendeu a falar de novo. Isso mostra o quanto ele queria ser árbitro".

A devoção de Ramos à sua carreira era tamanha que lhe sobrava pouco tempo para outras atividades.
Assim, não foi surpresa para seus amigos que ele viesse a conhecer sua mulher, a francesa Florence, em um torneio de tênis, o Aberto do Estoril, no começo da década de 1990, quando Florence trabalhava para o patrocinador do torneio, a fabricante de relógios Rado.

O casal tem dois filhos e vive em Lyon, na França.

Hoje, Ramos fala quatro idiomas fluentemente: português, inglês, francês e espanhol. Mas mesmo assim, ainda que tenha obtido o distintivo dourado (que representa o mais alto nível de certificação de arbitragem concedido pela Federação Internacional de Tênis) em 1993, havia questões da parte de alguns de seus colegas veteranos quanto à sua capacidade de comunicação.

"A impressão que tive era a de que ele era um cara muito rígido, nada flexível", disse Norm Chryst, que por duas décadas foi árbitro no circuito da ATP (Associação dos Tenistas Profissionais), para a qual Ramos trabalhou esporadicamente na década de 1990.

"E se conversávamos sobre como mudar a maneira pela qual arbitramos, de forma a tornar o jogo melhor para os jogadores, para o esporte e para os torcedores, era sempre ele que contra-argumentava dizendo que arbitrávamos como o jogo devia ser arbitrado. Era pouco provável que ele concordasse quanto a tentarmos algo de novo".

Chryst, como a maioria dos demais árbitros, considera que Ramos se comportou corretamente na final do Aberto dos Estados Unidos. Mas ele recorda dirigentes da ATP expressando preocupações sobre a rígida adesão de Ramos às regras, duas décadas atrás, dizendo que isso prejudicava sua capacidade de se adaptar aos jogadores e às situações de jogo.

"O sentimento que tínhamos era o de que ele não melhoraria o bastante para chegar a apitar os jogos verdadeiramente grandes", disse Chryst, fazendo uma pausa. "Obviamente estávamos errados".

Em 2004, Ramos foi contratado em período integral pela Federação Internacional de Tênis, e deslanchou. Além de arbitrar finais dos quatro torneios do Grand Slam, ele também apitou a decisão da medalha de ouro do tênis masculino na Olimpíada de 2012.

Os principais árbitros viajam entre 30 e 40 semanas por ano, e muitas vezes veem mais seus colegas de arbitragem do que os amigos e a família. Nesse ambiente, dizem colegas, Ramos se tornou um homem admirado. Fundista ávido, ele costuma recomendar livros sobre a modalidade a outros corredores no circuito do tênis. Em Wimbledon, alguns anos atrás, um grupo de dirigentes da Federação Internacional de Tênis alugou uma casa, e Ramos se tornou o principal cozinheiro do grupo.

Mas em quadra, seu foco é primordialmente a ordem, e depois dos problemas na final do Aberto dos Estados Unidos, sua história de desentendimentos verbais com jogadores voltou a ganhar relevância. Andy Murray o acusou de "arbitragem estúpida", Novak Djokovic certa vez o acusou de "duplicidade" e Rafael Nadal se queixou de seu excesso de severidade.

Isso não custou trabalhos a Ramos. Os colegas árbitros e os dirigentes do tênis em geral expressam apoio a ele, nem que apenas por princípio. Mas depois do Aberto dos Estados Unidos, Katrina Adams, a presidente da Associação de Tênis dos Estados Unidos, e Steve Simon, presidente-executivo da WTA, criticaram a arbitragem de Ramos na final feminina.

Uma semana mais tarde, ele retomou sua vida profissional normal, viajando a Zadar, Croácia, para uma partida da Copa Davis. Ele impôs uma penalidade ao croata Marin Cilic por jogar a raquete no chão e quebrá-la.

Seabra disse que Ramos não parecia abalado pelo confronto com Williams, e pelos debates que isso causou.

"Na situação em que estou, o melhor é continuar trabalhando", disse Ramos depois do incidente, de acordo com Seabra, que conversou com ele por 45 minutos no dia seguinte.

"Ele parecia estar melhor do que eu", Seabra acrescentou, rindo.

Williams, enraivecida, disse a Ramos na quadra do Aberto dos Estados Unidos que ele jamais voltaria a arbitrar um de seus jogos. Mas a Federação Internacional de Tênis o apoiou e aplicou uma multa contra a tenista.

O próximo torneio em que eles podem se encontrar será o Aberto da Austrália, em janeiro. E dessa vez a escolha de árbitros para os jogos vez pode despertar interesse.

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