Julgamentos coletivos da Turquia curam feridas do golpe e reabrem outras
Os tribunais turcos estão a algumas semanas de concluir cerca de 300 julgamentos coletivos cujo objetivo é colocar um ponto final em um dos mais traumáticos eventos da história turca recente: o golpe de Estado fracassado de 2016, que causou a morte de 251 e ferimentos em mais de 2.000 pessoas, em sua maioria civis.
Até o momento, cerca de 3.000 pessoas, tanto membros dos serviços de segurança quanto civis, foram condenadas, e os veredictos abrangentes foram recebidos positivamente pelo governo e por seus simpatizantes como sinal de que foi feita justiça.
Mas o processo também agravou as divisões políticas na Turquia e aprofundou o sentimento de perseguição entre os oponentes do governo, que dizem que os julgamentos coletivos são emblemáticos da arbitrariedade cada vez maior do sistema de justiça sob o presidente Recep Tayyip Erdogan.
As provas abundantes apresentadas durante os julgamentos eliminaram quaisquer possíveis dúvidas de que houve um complô organizado para derrubar Erdogan, que escapou por pouco de ser capturado na noite do golpe.
Mas ativistas dos direitos humanos e críticos do governo dizem que os procedimentos —entre os quais julgamentos coletivos envolvendo entre 100 e 200 acusados— apresentaram falhas graves a ponto de prejudicar as acusações contra os responsáveis pelo golpe.
Em muitos dos julgamentos, a tensão era forte. Partidários do governo expressavam raiva e gritavam acusações quando um réu declarava inocência. Policiais e guardas penitenciários estavam presentes em grande número em todas as salas de audiência, que tinham o tamanho de quadras esportivas.
Os juízes em muitos casos demonstravam desdém, contrariando a tradição da Justiça e chamando os acusados por seus prenomes. Além disso, demonstraram clara parcialidade, se queixam os críticos.
Na cavernosa sala de audiências de uma penitenciária de alta segurança nas cercanias de Istambul, em dezembro, familiares de vítimas tamborilaram sua aprovação nos tampos das mesas quando um juiz declarou 48 oficiais do Exército culpados de traição e homicídio.
"Estou feliz com a decisão que eles tomaram", disse Mustafa Uygun, antigo gerente de uma estação de metrô que levou um tiro nas costas na noite do golpe e agora se movimenta em cadeira de rodas. "Eles foram sentenciados a 20 anos adicionais de prisão por atirarem em mim".
Julgamentos coletivos têm uma longa tradição na Turquia, e foram usados com frequência depois de golpes, em alguns casos por ordem de pessoas que são réus nos julgamentos recentes. Mas a imensa escala dos procedimentos não tem comparação com qualquer coisa acontecida em países ocidentais nos últimos anos.
Os críticos dizem que julgamentos coletivos representam uma forma de punição em massa que se estendeu para bem além dos líderes da tentativa de golpe, já que as medidas repressivas de Erdogan foram aplicadas a todos os militares que estavam de serviço naquela noite em bases e unidades militares de todo o país.
O juiz Orhan Gazi Ertekin, copresidente da Associação por um Judiciário Democrático, descreveu os julgamentos em massa como ilegais, e afirmou que os processos se concentravam não nos atos das pessoas que estavam em julgamento, mas em suas escolhas políticas.
"O objetivo é transformar convicções políticas em condenações penais, humilhar física e espiritualmente, destruir aqueles que foram derrotados politicamente", disse. "E ao mesmo tempo é uma espécie de espetáculo."
"O resultado é predeterminado", acrescentou. "O juiz é designado e itinerante. Ele ganha quando condena, não quando inocenta."
Cinco líderes civis e 38 comandantes seniores das Forças Armadas foram acusados de integrar o conselho de liderança do complô para o golpe, em dois julgamentos importantes que aconteceram perto do final dos procedimentos.
O líder religioso muçulmano Fethullah Gülen também foi indiciado nos casos principais, acusado de organizar o complô de sua base nos Estados Unidos. As autoridades americanas afirmaram que as provas apresentadas contra ele não bastavam para justificar sua extradição.
Mas além das pessoas que caracterizou como líderes da trama, o governo turco também deteve dezenas de milhares de militares, de comandantes importantes e membros das forças especiais a cadetes e policiais, que serviam nas bases militares e nas unidades que se envolveram em confrontos em todo o país na noite da tentativa de golpe.
Advogados de defesa estão pressionando pela libertação dos soldados de patente mais baixa, porque em muitos casos eles receberam ordens de sair às ruas, desarmados, ou foram informados de que estavam protegendo o país contra um ataque terrorista.
Simpatizantes do governo e suas famílias acusam muitos dos réus de mentir, e é comum que gritem insultos durante as audiências. Os advogados das vítimas apontam que os líderes do complô negaram desde o começo que houvesse um plano para um golpe.
"É uma defesa organizada", disse Oguzkan Guzel, advogado de alguns dos veteranos feridos na tentativa de golpe. "No começo do julgamento da base de Akinci" —um dos mais importantes envolvendo líderes do golpe— "os acusados se levantaram e disseram que não cooperariam. Estavam preparando o terreno".
De sua parte, os réus e seus advogados acusam o governo de violar seus direitos, o que inclui maus tratos e tortura nos dias posteriores ao golpe, e de uso de falsas provas e de confissões forçadas.
Os juízes estão sob pressão. Cerca de 3.000 juízes foram demitidos no expurgo que se seguiu à tentativa de golpe. Alguns juízes foram substituídos durante julgamentos —o que em si representa uma violação—, em muitos casos por juízes inexperientes recém-formados nas escolas de direito.
"O juiz de uma cidade vê que há outros juízes encarcerados; o representante do alto conselho dos juízes e procuradores públicos, que escala os juízes para julgamentos, está preso; portanto, há um clima de medo", disse Husamettin Cindoruk, veterano advogado e antigo ministro do governo. "Há uma crise no Judiciário."
Uma exceção pode ser o juiz Oguz Dik, que preside os casos mais importantes relacionados ao complô para o golpe, entre os quais os processos contra oficiais que tentaram tomar o controle do Estado-Maior geral das Forças Armadas e apontaram armas contra o general Hulusi Akar, o chefe do Estado-Maior, e outros oficiais, aprisionando-os. Doze pessoas foram mortas na sede do Estado-Maior durante o golpe.
"Aquele julgamento é a referência", disse Guzel, advogado dos veteranos.
Ihsan Sartik, juiz aposentado, trabalhou como advogado de Uygun, o gerente da estação de metrô que foi ferido na noite do golpe. Sartik disse que havia provas mais que suficientes —entre as quais vídeos de câmeras de segurança, gravações de conversas pessoais e telefônicas, e relatos de testemunhas— para demonstrar que os principais acusados tentaram tomar o poder à força.
O comandante da escola militar de Kuleli foi apanhado em vídeo por um espectador prometendo enterrar os manifestantes e solicitando mais munição, ele disse.
"O que aconteceu não foi um golpe, mas uma tentativa de causar uma guerra civil", disse Sartik. "Os oficiais de alta patente são responsáveis por isso."
Em sua declaração final, o procurador público encarregado da acusação abandonou as acusações contra 64 recrutas e cadetes, mas solicitou sentenças múltiplas de prisão perpétua para quase todos os demais envolvidos, levando em conta cada caso de lesão ou morte de civis durante o golpe.
Uma advogada, Sibel Polat, disse que sua cliente, uma oficial não comissionada das Forças Armadas, foi alvo de 13 acusações sujeitas a sentença de prisão perpétua sem direito a liberdade condicional, em casos nos quais não existem privas.
"Não há provas de que ela estivesse armada, nenhuma testemunha, nenhuma imagem de câmeras", disse Polat. "Só existem as imputações do promotor."
O juiz demorou duas horas para ler as múltiplas sentenças. Do outro lado da sala, surgiram exclamações audíveis quando o juiz ordenou que 12 policiais fossem libertados, depois de condená-los a sentenças equivalentes ao tempo que já passaram detidos. Homens e mulheres se abraçaram, limpando lágrimas dos olhos. Outros ficaram sentados em silêncio, com os olhos voltados para baixo.
Na escadaria do tribunal, um grupo de mulheres usando lenços de cabeça de cores brilhantes posou para uma foto. A líder do grupo disse que elas eram partidárias de Erdogan, e fez um sinal de positivo com o polegar.
"O veredicto nos reconfortou, de alguma forma", disse Cun Cumurcu, líder do bairro de Cengelkoy, que foi ferido na noite da tentativa de golpe. "Continuo a sentir dor, mas os culpados foram condenados."