Laura Restrepo leva à ficção crime monstruoso ocorrido em Bogotá

 

Protesto de familiares e amigos de Yuliana Samboní, em Bogotá (Foto El Tiempo)

Enquanto o país acabava de colocar ponto final nas polêmicas em torno do acordo de paz com a guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), subitamente a atenção pública foi pega de surpresa por conta de um crime tenebroso. No dia 4 de dezembro de 2016, um jovem arquiteto de classe média alta de Bogotá, Rafael Uribe Noriega, foi a um bairro pobre da periferia da cidade, sequestrou uma garota de sete anos, Yuliana Samboní, e a levou a um de seus apartamentos.

Horas depois, Uribe Noriega telefona desesperado a seus familiares. Ao estuprar a garota, tratou-a com tal violência que a matou. As evidências eram tão claras que ele acabou confessando o crime no tribunal, enquanto marchas ocorriam na cidade contra a falta de segurança, os crimes de gênero e pela proteção dos menores. O assassino foi condenado a 58 anos de prisão.

Essa história tenebrosa foi ficcionalizada pela escritora Laura Restrepo, uma das mais importantes da Colômbia, e virou o livro “Los Divinos”, recém-lançado no mundo de língua hispânica pela Alfaguara. Para contar a história, a escritora criou um personagem, o Hobbit, um tipo meio nerd que não sai de seu apartamento, onde vive em meio a comics, videogames e que possui uma só janela, que dá para um pátio interior, e portanto não consegue diferenciar o dia da noite, uma metáfora para como a própria sociedade vive ensimesmada e com pouca sensibilidade com relação ao que ocorre ao redor. É ele quem descobre que um de seus melhores amigos cometeu tal crime e é através de suas alterações de sensações que o leitor fica sabendo o que aconteceu.

Restrepo não cai na armadilha de colocar o foco no pano de fundo da tensão entre classes, algo que foi muito explorado pelos meios colombianos quando o crime ocorreu. Sua investigação passa mais pela psique do assassino, de seu entorno e de como se percebem e se cometem esses delitos numa sociedade já tão acostumada a certo tipo de violência. A realidade do país, porém, salta naturalmente. O fato de a personagem da garota ser indígena, mulher, menor, pertencente a uma família de deslocados pela violência, fala muito da Colômbia de nossos dias. Restrepo chama a atenção, porém, de que quis deixar claro que o assassino não era uma aberração, e sim um ser humano que, um dia, foi capaz de uma violência atroz que embrulhou o estômago de todo um país. De certa forma, mesmo elucidado tecnicamente, o crime segue sendo um mistério, e “Los Divinos” é uma tentativa de resolver o quebra-cabeças psicológico e social que ele deixou incompleto por meio da literatura.

 

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