Última intervenção dos EUA na América Latina matou centenas e usou rock como arma
Antonio Vargas, 43, saiu de casa à noite para ir cuidar de sua mãe, que estava doente. Morador da Cidade do Panamá, ele seguia pela rua quando foi surpreendido por tiros vindos de um helicóptero. Vargas foi visto pela última vez correndo em busca de abrigo. Seu corpo, atingido por projéteis, foi encontrado meses depois, em uma vala comum.
Na madrugada de 20 de dezembro de 1989, os Estados Unidos invadiram o Panamá para tirar o ditador Manuel Noriega do poder. Foi a última ação militar norte-americana realizada desde então para derrubar um governo na América Latina.
Quase 30 anos depois, familiares seguem buscando parentes desaparecidos. “Muitos corpos foram queimados ou jogados no mar, e provavelmente nunca serão encontrados”, conta Trinidad Ayola, 62, líder da associação de familiares de vítimas e mulher de um piloto morto em combate.
Segundo os EUA, a operação deixou 202 civis mortos. A associação de familiares estima em 500 vítimas fatais. Relatórios feitos na época da invasão apontaram que o número poderia chegar a 7.000.
“Talvez nunca será possível saber, pois muitos eram jovens na época e hoje não têm parentes que os procurem”, diz Ayola. “Depois da invasão, ter um familiar morto na invasão poderia gerar problemas, como perder o emprego. Então muitos se calaram.”
Os governos do Panamá nas décadas seguintes desviaram do tema. Até que, em 2018, o governo do país criou uma comissão da verdade para apurar dúvidas ainda pendentes sobre a invasão, como o total de mortos.
“No momento, temos ao redor de 200 mortes documentadas, e uma quantidade similar de casos em processo”, diz Jose Sosa, secretário executivo da Comissão 20 de Dezembro. "O processo para determinar o número de vítimas continua."
O grupo deve estender seus trabalhos até 2020. Corpos que estavam em fossas comuns estão sendo identificados por DNA. Uma delas foi reaberta na semana passada.
Uma ação militar é uma das opções consideradas pelo governo de Donald Trump para forçar a saída do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro.
A situação do Panamá de 1989 tem semelhanças com a da Venezuela atual. O país vinha de uma série de eleições com suspeitas de fraude, que motivaram protestos nas ruas, duramente reprimidos. Os EUA impuseram sanções econômicas ao país, sem que o ditador cedesse. E Washington tinha interesses econômicos. Na Venezuela, há petróleo, e Maduro acusa os EUA de planejarem uma intervenção militar para ter acesso às reservas de petróleo do país, as maiores do planeta.
No Panamá, há o canal, importante rota de navios norte-americanos, cujo controle à época era dividido entre o país da América Central e os Estados Unidos.
Assim como Maduro sucedeu Hugo Chávez após sua morte, em 2013, Noriega assumiu o governo após o ditador Omar Torrijos perder a vida em um acidente, em 1983. No entanto, Noriega tem uma história mais complexa: ele nunca foi o presidente formal do país, mas ditava as regras a partir da cadeira de chefe das Forças Armadas.
Noriega ascendeu no Exército durante a ditadura de Torrijos nos anos 1970. Perseguia opositores, negociava vantagens para narcotraficantes colombianos e ainda era informante da CIA.
Sua relação com os EUA mudou na década seguinte. Em fevereiro de 1988, em meio à guerra às drogas promovida por Washington, Noriega foi processado pela Justiça dos EUA por ter relações com o narcotráfico. O Panamá era usado como paraíso fiscal pelos criminosos e como rota de envio de entorpecentes.
Como resposta ao processo, o então presidente do Panamá, Eric Delvalle, retirou Noriega do comando militar. Porém, no dia seguinte, Delvalle foi deposto pelo Congresso. Um presidente favorável ao ditador assumiu e o reconduziu ao cargo.
Os EUA responderam com mais sanções e bloquearam pagamentos ao governo do país. Veio então uma crise econômica, que levou à escassez de dinheiro, mas não de alimentos. "Recebíamos os salários em cupons e trocávamos eles no comércio por comida e produtos", recorda Ayola.
Em maio de 1989, houve novas eleições presidenciais. O candidato do governo ganhou, mas a Justiça eleitoral anulou o resultado, alegando que houve interferência estrangeira. O controlador-geral da República assumiu de forma interina.
Naquele ano, houve incidentes entre militares dos EUA, que patrulhavam o canal, e o Exército local, incluindo troca de tiros que deixou mortos e feridos. Isso ampliou a tensão entre os países.
Após os EUA enviarem mais soldados ao canal, o congresso do Panamá declarou “Estado de Guerra” em 15 de dezembro de 1989. A resposta de Washington veio cinco dias depois, com o lançamento da operação Causa Justa.
Sob comando de George Bush, os Estados Unidos enviaram 26 mil soldados, apoiados por aviões e navios na madrugada de 20 de dezembro. Parte deles já estava na região, patrulhando o canal. A operação pretendia "restaurar a democracia" e levar Noriega à Justiça.
O ataque teve como foco as instalações militares panamenhas. No entanto, parte delas ficava ao lado de moradias civis. Dezenas de pessoas morreram vítimas de tiros, bombas e incêndios, muitas dentro de casa.
Durante o ataque, Noriega sumiu. Na manhã seguinte, um novo presidente, aliado aos EUA, tomou posse. A ação para destruir instalações militares prosseguiu. Mais de 3.000 pessoas foram presas e levadas a campos de detenção.
Ao todo, mais de 15 mil pessoas foram desalojadas. Houve uma onda de saques. As ruas da capital ficaram desertas. Apenas um canal de TV, controlado pelos EUA, seguiu transmitindo notícias.
Forças leais ao ditador tentaram organizar uma resistência, sem sucesso. Um grupo invadiu um hotel de luxo e tomou como reféns dezenas de estrangeiros. Outros militares fugiram para as montanhas.
Noriega ficou foragido por alguns dias, até ser localizado em um prédio da representação diplomática do Vaticano. O lugar foi cercado por militares norte-americanos, que lançaram mão de uma estratégia curiosa: colocaram caixas de som tocando rock em volume altíssimo, 24 horas por dia, até Noriega se render. O plano deu certo e o ex-ditador se entregou após dez dias. As tropas estrangeiras ficaram no país por mais um mês.
Levado aos EUA, Noriega foi condenado a 40 anos de prisão. Em 2010, ele foi extraditado para a França, onde foi sentenciado por lavagem de dinheiro. No ano seguinte, a França o enviou ao Panamá, onde outro julgamento o aguardava. Ele foi condenado outra vez, e seguiria detido até morrer, em 2017, aos 83 anos, vítima de um tumor cerebral.
Outras intervenções dos EUA no continente
1898 - Cuba
Guerra contra a Espanha, que terminou com a independência de Cuba e a anexação de Porto Rico
1903 - Panamá
Apoio à rebelião que levou o Panamá a se separar da Colômbia, com o objetivo de liberar a construção do canal de navegação
1909 a 1933- Nicarágua
Soldados ocuparam o país durante quase todo o período. Uma das razões era evitar que outro país construísse um canal similar ao do Panamá
1915 a 1934 - Haiti
Após uma revolução que matou o presidente, militares ocuparam o país e passaram a atuar na política e na economia
1916/17 - México
10 mil soldados foram enviados para capturar Pancho Villa, um dos líderes da Revolução Mexicana. A missão falhou
1954 - Guatemala
Apoio a golpe contra governo que queria desapropriar terras de empresa dos EUA que plantava bananas
1961 - Cuba
Suporte a plano de cubanos opositores, que tentaram invadir a ilha e derrubar Fidel Castro, sem sucesso
1964 - Brasil
EUA deram apoio ao golpe militar e deslocaram um frota naval na direção do litoral brasileiro, mas a ajuda não foi necessária
1965 - República Dominicana
Soldados invadem o país após um golpe de estado derrubar um governo aliado de Washington
1973 - Chile
Financiamento a opositores do presidente socialista Salvador Allende, alvo de um golpe de Estado
1976 - Argentina
Apoio a generais que deram golpe contra a presidente Isabelita Perón
1983 - Granada
Tropas derrubaram o governo local, que se aproximava do comunismo
1994 - Haiti
EUA prepararam tropas para depor um regime militar, mas negociadores convenceram o governo a deixar o poder pouco antes da invasão