Machos sensíveis e mulheres impositivas remodelam os filmes de faroeste
O cinema americano plasmou a imagem de caubóis sisudos, embrutecidos e um tanto impenetráveis. Essa couraça, contudo, vem sendo perfurada pelo furor dos movimentos feministas #MeToo e o Time’s Up, que estão entre as forças que moldam um novo velho oeste nas telas.
No último ano, foram lançados seis títulos nessa nova toada, carregados de diversidade racial e mea-culpa colonial, e povoados por machos sensíveis e mulheres impositivas.
É uma guinada que vem alimentada por Hollywood, bastião liberal da América, e recai justamente sobre o gênero por excelência da produção ianque, espelho centenário dos valores daquele país.
Lançado quatro meses após a revelação do escândalo Weinstein, o longa “Damsel”, sem data prevista para estrear no Brasil, parece feito sob medida para saciar a grita por igualdade de gêneros. Sua mensagem fica clara no título —“donzela” em inglês—, que ironiza histórias sobre mocinhas em perigo.
A australiana Mia Wasikowska, de “Alice no País das Maravilhas”, é quem faz a dama em apuros, ou melhor, a sua antítese. Noiva do abobalhado Samuel, vivido por Robert Pattinson, ela foi raptada por um bandido. O que a trama revela, entretanto, é que a moça não é nenhuma parva à espera de um machão que a resgate.
“Ela é uma tela em branco sobre a qual todos projetam uma imagem, mas que o filme trata de subverter”, disse a atriz a um pequeno grupo de jornalistas, no último Festival de Berlim, em fevereiro. “Escolhi essa personagem porque ela tem voz própria”, completou, emendando um discurso afinado ao Time’s Up e afins.
Os texanos David e Nathan Zellner, diretores de “Damsel”, escancaram logo no início da história a intenção de quebrar as expectativas dos que esperam ver os clichês do faroeste.
No prólogo, com uma atmosfera digna de “Esperando Godot”, um pastor desencantado aguarda o trem que o levará de volta para o leste enquanto um sujeito mais jovem, empolgado, não vê a hora de se aventurar no oeste. Na cena seguinte, o outrora entusiasmado empreendedor já é um bêbado decepcionado.
“Existe uma idealização sobre o que foi a expansão dos pioneiros. Queríamos contrapor isso à visão de quem viu a realidade”, afirma Nathan.
Ele crê que “a fórmula faroeste ficou entediante”. “Aquilo do herói impermeável e da mulher que ou é uma prostituta ou precisa ser salva já era.”
A “Damsel” se soma “The Sisters Brothers”, que rendeu o prêmio de direção ao francês Jacques Audiard no Festival de Veneza e parte da figura do caubói para discutir masculinidade. Já “Hostis” promove as pazes com os índios, heresia aos olhos do cânone.
O revisionismo lembra o esforço de diretores como Robert Altman e Sam Peckinpah, nos anos 1960 e 1970, mas agora sob códigos de um mundo sacudido por Donald Trump.
Netflix também depositou suas fichas nesse faroeste reformulado, que revisita os filmes de caubói sob à luz de um novo tipo de feminismo.
No serviço sob demanda desde novembro do ano passado, a minissérie “Sem Deus” (“Godless” no original) traz um regimento inteiro de vaqueiras. A trama é ambientada num vilarejo de maioria feminina que precisa se armar contra homens foras da lei.
Marketing à parte, não demorou para que as críticas apontassem que só 27% das falas no primeiro episódio são pronunciadas por mulheres e que no coração da trama há um embate entre dois homens, o mocinho e o bandido.
O tiro também sai pela culatra no filme “Uma Mulher Exemplar”, de Susanna White, que, sob o pretexto de dar proeminência à personagem feminina, acaba varrendo para baixo do tapete a verdade dos fatos tal como se deram.
A obra remonta o contato entre uma artista de origem europeia (Jessica Chastain) e o líder do povo sioux, Touro Sentado, então em conflito com os brancos. O filme faz crer que foi ela quem avivou no chefe indígena a faísca da rebelião, embora fora da ficção o sujeito já fosse politizado, como apontou crítica do jornal The New York Times.
“Hostis”, de Scott Cooper, é outro que almeja apagar as chagas do colonialismo perpetuadas pelo western clássico.
Christian Bale faz um soldado encarregado de conduzir com segurança uma família de índios cheyenne de volta a seu território. A epígrafe que abre o filme, extraída do escritor D. H. Lawrence, faz um contraponto crítico à exaltação dos pioneiros: “A verdadeira alma americana é dura, isolada, estoica e assassina”.
Embora não vilanize índios, como nas produções do passado, “Hostis” tampouco dá a eles alguma primazia, deixando aos brancos o heroísmo. Opta ainda por uma mensagem de conciliação de raças que não traduz os embates que marcaram o período.
A própria mitologia do faroeste, impulsionada por John Ford, Howard Hawks e outros expoentes, está alicerçada em símbolos pouco fidedignos.
Na época da marcha para o oeste, segundo historiadores, aquelas terras americanas estavam nas mãos de fazendeiros de origem hispânica, e os vaqueiros que disseminaram a figura do caubói eram, ao que tudo indica, negros que fugiram dos estados do Sul nos anos seguintes à Guerra Civil.
Para a ficção, aquele mundo de amplos espaços abertos servia como cenário perfeito para figuras que exaltavam o ideal do “self-made man”, tão caro aos americanos. Foi quando o caubói embranqueceu e virou epítome do país.
Não por acaso, foi esse o universo que o cineasta francês Jacques Audiard escolheu para rodar seu primeiro longa de língua inglesa, “The Sisters Brothers”. Ancorada em quatro personagens homens, vividos por Joaquin Phoenix, John C. Reilly, Jake Gyllenhaal e Riz Ahmed, a obra revira os confins da masculinidade.
Phoenix faz o irmão durão e Reilly faz seu contraponto doce, emotivo e redentor —figura frágil que decerto desagradaria a John Wayne e seus tipos severos e monocórdicos.
Foi, aliás, diante de uma estátua de cera do ator, segundo quem negros não são “educados a ponto de serem responsáveis”, que Trump posou em sua campanha presidencial. “Ele representava força, representava o oposto do que vemos hoje em dia”, afirmou o então candidato.
Para Hollywood, antagonista do republicano, John Wayne é um herói que comeu poeira.