Marília Gabriela protagoniza sequência de 'Casa de Bonecas', de Ibsen
É como num tribunal que Nora Helmer, protagonista de "Casa de Bonecas", é recebida pela família, 15 anos depois de ter deixado o lar.
Chega a uma casa esvaziada, pontilhada por algumas cadeiras. Um a um, é julgada por governanta, marido e filha.
A crítica ao casamento burguês retratada pelo norueguês Henrik Ibsen no fim do século 19 ganha laços com os dias de hoje na sequência "Casa de Bonecas - Parte 2", do dramaturgo americano Lucas Hnath, que estreou no ano passado em Nova York e chega neste sábado (11) a São Paulo.
Hnath imagina o que teria acontecido a uma das personagens mais célebres do teatro depois do fim de "Casa de Bonecas", quando Nora sai pela porta de casa, deixando para trás marido e os três filhos.
No original de Ibsen, considerado um dos primeiros dramas do realismo moderno, Nora faz um empréstimo às escondidas para ajudar o marido, Torvald. Mas acaba chantageada pelo agiota e, então, humilhada pelo esposo.
Ao fim, percebe que sempre foi uma boneca para os homens ao seu redor, que a tratavam com desdém.
A sequência de Hnath acontece 15 anos mais tarde, quando Nora se torna uma escritora de um certo sucesso, publicando livros de cunho feminista sob um pseudônimo.
Uma de suas edições fala de uma mulher que, como ela, vive um casamento infeliz e resolve abandonar a família.
Nora então percebe que Torvald nunca deu cabo ao casamento e decide retornar a casa para pedir ao marido que inicie o divórcio —pelas leis da época, algo muito mais fácil se vindo do homem.
Na recepção, é julgada por todos, tanto pelo abandono como por negar as tradições do casamento. Mas logo descobre que a família tem lá seus interesses em negar o divórcio. Com seu sumiço, deram-na por morta e passaram a receber uma pensão do governo.
O dramaturgo mantém a ação ainda em fins do século 19, mas moderniza o linguajar, utilizando inclusive palavrões, como um "foda-se" aqui e ali.
"Ele faz um blend do antigo e do moderno. É incrível pensar como muita coisa coisa não mudou, é um discurso tão atual", diz Marília Gabriela, idealizadora da montagem brasileira e intérprete de Nora, lembrando o caso da advogada Tatiane Spitzner, morta no fim de julho no Paraná —seu marido é o principal suspeito.
"É como se sua existência, por ser mulher, dependesse necessariamente dos outros."
Hnath não coloca na peça muitas rubricas (indicações de como a encenação deve ser feita), mas escreve numa estrutura poética, com versos que por vezes começam mais distantes da margem, brinca com repetições de palavras.
Esse ritmo, explica a diretora Regina Galdino, guiou a musicalidade e a trilha sonora da montagem brasileira.
O autor ainda resgata estruturas do original. Em Ibsen, Nora é chamada de criminosa pelo marido por falsificar um documento. Aqui, recebe a proposta de forjar um óbito, e é ela quem rebate: querem fazer de mim uma criminosa?
A Nora de Hnath não é totalmente livre, mas logra cortar as amarras de marionete.