'Mataram minha mãe e me separam de meu pai': o drama das crianças imigrantes nos EUA
Rosa espera o menino, que vem sozinho. O menino é bochechudo, tem covinhas e cabelos bem pretos. É seu neto, que ela não vê há 11 anos e de quem vai cuidar de agora em diante.
Já tinham se passado duas horas e o menino não chegava. Rosa, aliás, havia chegado antes do horário no aeroporto, porque estava ansiosa.
Os voos aterrissam e pela porta saem famílias com mais crianças que adultos. Os pequenos carregam mochilas com ilustrações de desenhos animados, trajam bermudas coloridas e ficam olhando a loja do Mickey Mouse que fica logo no portão. Muitos estão em Orlando para visitar a Disney.
No meio de todo mundo, de repente aparece um menino sozinho. "É o Brayan", disse Rosa. "É o meu menino."
Ela corre até ele o abraça. "É idêntico às fotos, igualzinho ao pai", me diz a hondurenha, que tem 45 anos e seis filhos.
"Vó", diz o menino, fixando o olhar nela. Passageiros ao redor tiram fotos, e vários me perguntam se ele é uma das crianças separadas dos pais por Donald Trump.
Brayan tem 11 anos, e a primeira vez que subiu num avião foi há quase três meses, quando o separaram do seu pai, José, na fronteira dos Estados Unidos, e o enviaram a um refúgio para crianças migrantes em Maryland, no leste do país.
Brayan também é um das mais de 2.500 crianças que o governo dos EUA separou de seus pais entre abril e junho ao endurecer a política de imigração.
Em meados de junho, o presidente americano reverteu a prática, após uma onda de críticas e uma série de questionamentos legais. Mas muitas crianças ainda não estão com suas famílias.
O governo teve até quinta-feira para liberar os menores de idade cujos pais são elegíveis para recebê-los de volta.
A administração Trump disse que devolveu mais de 1.800 crianças às famílias.
Brayan está entre eles, o que faz dele uma criança de sorte. "Sorte", levando em conta que seu pai foi deportado e ele não poderá vê-lo por anos e que sua mãe foi assassinada em Honduras e seu corpo, jogado em um poço.
UMA LONGA VIAGEM QUE ACABOU EM SEPARAÇÃO
Brayan fala pouco e sorri enquanto brinca com seu irmão menor, Yair, que parece saber como vencê-lo no videogame que estão jogando no celular da sua avó.
É a primeira noite que ele passa nos Estados Unidos fora do abrigo onde, segundo o assistente social que cuidou do caso dele, não conseguia dormir, e ficava sentado na cama sem falar nada.
Agora se limita a me dizer que esteve lá por dois meses e meio, como se tivesse contado cada dia da sua estadia, e que não gostava da comida.
Conheci os irmãos quando José ainda os acompanhava. Estava em Puebla, México, numa das últimas etapas de uma caravana de centenas de migrantes que se mobilizou rumo ao norte.
Um parente de José ouviu na televisão que a caravana ajudava os imigrantes a cruzar a fronteira de maneira segura e com ajuda legal. Por isso, me conta Rosa, seu filho decidiu que era uma oportunidade de embarcar na viagem, junto com sua mulher, Nubia, e os dois filhos.
A família viajou a pé, de trem e de ônibus por quase 50 dias, até que chegou ao portão da fronteira de San Isidro (entre San Diego, na Califórnia, e Tijuana, no México). Ali lhes aconselharam que José e Brayan se apresentassem primeiro às autoridades, e Nubia e o pequeno Yair, de cinco anos, depois.
José seguiu a recomendação e no dia 4 de maio, junto com Brayan, disse a um funcionário de imigração que queria pedir asilo.
Ele me conta que não imaginava o que viria depois. Levaram o menino embora, e ele não entendeu o motivo.
"Tiraram ele dos meus braços, e eu vi ele em outra cela, chorando, e ninguém o ajudava", lembrou José, numa conversa ao telefone, no dia 12 de julho.
Na única chamada telefônica que lhe permitiram, José avisou sua mãe, Rosa, que haviam tirado o menino dele, e que ele havia assinado um papel em inglês que ele achou que poderia ser a única forma de ter o menino de volta.
Vinte dias depois, no entanto, ele foi deportado para Honduras. Aparentemente, o documento que assinou assegurava sua deportação.
Instalado em uma cidadezinha rural do país, José diz que tem medo de estar de volta e que prefere que seu filho permaneça nos EUA.
"Não quero que volte para cá porque aqui é perigoso para ele. É melhor ficar com a avó", diz.
O governo de Trump declarou, na terça-feira, diante de um tribunal federal, que mais de 450 pais migrantes separados dos filhos na fronteira não estão nos EUA. José faz parte dessa estatística.
A mãe de Brayan o teve quando ela tinha 14 anos. O casal se separou, mas chegou a um acordo para que o menino passasse um ano com ela e outro com José.
A vida do garoto mudou em 2016, quando sua mãe foi assassinada. A imprensa local disse que seu namorado era suspeito do crime, mas que ele responsabilizou a facção criminosa Mara Salvatrucha pela morte da mulher.
Rosa e José me dizem que não sabem se os culpados foram presos. De toda forma, o menino corria perigo se ficasse no país.
Honduras, na América Central, é um dos países mais violentos da América Latina e do mundo.
As autoridades dizem que houve redução no número de assassinatos no país desde 2011, quando a taxa de homicídios era de 86,5 pessoas para cada 100 mil habitantes.
O governo afirmou que no ano passado a taxa caiu para 42,8 para cada 100.000 habitantes, graças ao "fortalecimento da polícia", como disse um porta-voz da Direção Policial de Investigação a veículos de imprensa locais em janeiro deste ano.
Mas, de acordo com organizações que monitoram a violência, o país segue figurando entre os mais perigosos da região.
DETIDO
Nubia e Yair foram liberados depois de passar um mês sob a custódia do serviço de imigração.
Uma funcionária ligou para Rosa com a notícia de que Brayan estava num refúgio para crianças migrantes.
Disseram a ela que um menino que era seu parente havia entrado no país sem acompanhante. Rosa respondeu que seu filho mais novo tinha 14 anos, mas estava em Honduras. Ao telefone, a funcionária lhe disse que esse menino era ainda mais novo.
"Disse a ela que meu parente mais novo era meu neto de 11 anos que se chama Brayan, e que ele não veio sozinho, mas com o pai", diz ela.
Depois disso, Rosa conseguiu ligar para Brayan no abrigo.
"Ele quase não falou comigo. Estava chorando, estava triste. Só me disse 'o que eu fiz para merecer isso, vó?' Eu disse que nada. 'Mataram minha mãe, meu veio só para salvar minha vida e me separaram dele. Não é justo.' Eu não disse mais nada, só que ia ficar tudo bem, que ia resolver tudo logo."
Resolver tudo se tornou o objetivo de Rosa nas semanas antes do reencontro com o menino.
TRAZER BRAYAN DE VOLTA
O Escritório de Reassentamento de Refugiados dos EUA exigiu que ela se mudasse para um apartamento maior para receber Brayan em um ambiente propício.
Também disse que ela deveria ter dinheiro disponível para comprar a passagem de avião do menino e possivelmente de um acompanhante de uma agência federal.
Os dias, mesmo os fins de semana, se encheram de trabalho para Rosa. Ela pediu dinheiro emprestado para seu chefe e fez jornadas de quase 12 horas montando pisos de madeira e fazendo trabalhos de construção para reunir cerca de US$ 3 mil (cerca de R$ 11 mil).
"Qualquer coisa para ter meu menino comigo. Ele sofreu muito", me dizia nas conversas por telefone que tivemos durante o mês de julho, à noite, quando ela chegava do trabalho.
Quando Brayan a contatava do abrigo, não falava muito. Um dia disse que tinha aprendido o abecedário em inglês. Outro dia lhe contou de um menino que havia jogado a comida do prato no chão. E outro, a notícia mais importante, disse que haviam avisado a ele que seria enviado para ela.
Os dois esperaram mais de uma semana depois da notícia que tanto os aliviou. O retorno demorou, disse um assistente social a Brayan, porque tinham que garantir que um funcionário poderia dar atendimento terapêutico a ele depois que saísse do abrigo.
Finalmente, na sexta-feira, dia 20 de julho, Rosa recebeu a ligação que tanto aguardava. Era o assistente social a cargo de Brayan dizendo que ela poderia comprar a passagem de avião do menino.
Logo antes, ela me mostrara foto do neto no seu celular. "Este é Brayan pequeno, aqui ele já estava maiorzinho, aqui estão Brayan e Yair num aniversário, este é Brayan na caravana, aqui o Brayan... Igualzinho ao pai."
Em alguns momentos enquanto olhava as fotos, o olhar melancólico e um pouco perdido que parece acompanhá-la a todo momento se desfazia com um sorriso.
Um dia depois, Rosa estava no aeroporto para ver um menino que conheceu brevemente quando ele tinha três dias de vida, logo antes de ela ir para os Estados Unidos.
"O pior já passou", me disse, com olhos brilhantes.
Nem Brayan nem Yair poderão voltar a ver seu pai por pelo menos cinco anos, devido à deportação de José.
Os dois pediram asilo e podem passar meses e anos antes de saber qual será sua situação legal definitiva nos EUA.
Rosa fala da chegada dos seus netos como "uma dádiva, um presente".
"Se aguentei com meus seis filhos, aguento com eles."