Memória dos pais domina conversa de portuguesa e brasileiro na Flip
As memórias dos pais e da violência, às vezes relacionadas a eles, outras não, foram o fio condutor da conversa entre a escritora portuguesa Isabela Figueiredo e do paulistano Juliano Garcia Pessanha, na tarde deste sábado (28) na Flip, em Paraty.
Figueiredo, que nasceu em Moçambique quando o país ainda era uma colônia de Portugal, reviveu o racismo que via na figura do pai em seu “Caderno de Memórias Coloniais”, publicado originalmente em 2009 e agora editado no Brasil pela Todavia.
“O colonialismo a vós brasileiros parece uma coisa muito distante. Para mim, é uma coisa que aconteceu há apenas 40 anos. E eu estive do lado dos colonialistas, eu pertencia a essa aristocracia colonialista e assisti à forma como os colonizadores tratavam os colonizados”, disse ela.
“Eu olhava para a forma como meu pai tratava os empregados negros e pensava que tudo aquilo estava errado”, lembrou, que disse não ter o poder de falar para o pai como ele era racista senão “levava uma bofetada”.
“Quando saí de Moçambique, faltando um mês para fazer 13 anos, nesse momento eu sabia que queria escrever sobre racismo e colonialismo, só não sabia como.”
Apenas depois da morte do pai, Figueiredo conseguiu botar no papel o que viu na África portuguesa. Mas a figura do racista se misturou à do homem que pediu que a filha, ao ir para Portugal, denunciasse a rotineira violência contra as mulheres que acontecia na terra onde nasceu.
“Quando faço alguma coisa de bom ou de mau pergunto se minha mãe e meu pai aprovaria. São figuras sagradas, têm um poder enorme sobre mim, sobre o que eu escrevo”, confessou.
A figura da mãe também é central na obra do escritor e filósofo Juliano Garcia Pessanha, autor de “Testemunho Transiente”, reunião de seus livros anteriores em edição lançada em 2015 pela Cosac Naify.
“Minha mãe falava, você era muito voraz, ela se sentia atacada. Então eu recuava”, disse Pessanha, ao lembrar de quando mamava no seio da mãe. “Me sentia errado em querer mergulhar nela.”
Para o filósofo, houve uma mudança na aura do artista nos últimos 40 anos. “A aura do artista, de que eu vejo e os outros estão dormindo, isso perdeu um pouco do prestígio por causa do caráter progressivo da explicitação e da explicação.”
Ele citou a autora homenageada desta edição da Flip, Hilda Hilst, como exemplo. “Aquilo que a Hilda era na época e o pessoal romantizava, hoje em dia você consegue dizer o lugar onde ela está.”
O bom humor dos dois autores deu as caras logo no início da mesa, quando Isabela tirou da bolsa uma pilha de livros do filósofo alemão Martin Heidegger, que pegou emprestado em uma biblioteca de Paraty assim que soube que seu colega de mesa era um filósofo.
Depois, ela levou a plateia aos risos quando fez um comentário sobre a beleza das pernas de Juliano e começou a imitá-lo trocando o apoio das pernas da esquerda para a direita.
Ao final, a portuguesa ainda cativou o público ao narrar um encontro casual que teve em Paraty, quando se sentou em um gramado para descansar e viu dois moradores sem-teto que pensou serem hippies.
Um deles, contou ela, tirou de um saco um livro de poemas de Manuel Bandeira. “O livro mais bonito que eu já vi”, disse Isabela, “as pontas roídas, gastas, via-se que era um homem que de fato lia aquele livro”.
Ao receber de presente o exemplar, ela disse que iria guardá-lo em seu coração. No que ouviu de resposta: “Guarde, mas não guarde assim tão bem, empreste, permita que os outros leiam”.