Meu Brasil violento
Em entrevista à Folha publicada na terça-feira (16), o professor de filosofia José Arthur Giannotti destaca como ponto positivo desta eleição o fato de ter se deslocado para o centro do debate algo que adoramos relegar às margens da sociedade e da consciência: a escandalosa violência brasileira.
"A eleição trouxe essa violência toda para o jogo político", diz Giannotti. "Nós temos uma violência insustentável: morre mais gente aqui do que na guerra da Síria. A eleição foi um banho de soda cáustica revelando as nervuras da real luta política."
Não se trata de um elogio da violência. Preocupado com as consequências da polarização, o professor de 88 anos afirma nunca ter visto "tanta violência, nem em 1964", e sonha com o renascimento do centro político para conter seu poder de destruição.
Trata-se, se entendi direito, de festejar o bem que representa encarar o mal nos olhos, sem véus de hipocrisia ou autoengano. Algo parecido com o que Confúcio tinha em mente quando disse que "se a linguagem não está de acordo com a verdade das coisas, nada acaba bem".
A violência das relações sociais num país em que os donos da terra transferiram a mão de obra da senzala para a favela, sem escala e até economizando um troco, é sem dúvida alguma um tema central.
Qualquer pessoa que conheça dois dedos da nossa história sabe que rios de violência e autoritarismo sempre correram no subsolo do país, entrando em erupção ao menor pretexto. No entanto, enredado em mitos fofos de conciliação e simpatia, o senso comum tende (tendia?) à negação do óbvio.
Para tanto recorremos até a um equívoco tão grosseiro quanto onipresente: o de tratar a "cordialidade" de Sérgio Buarque de Hollanda —traço do caráter nacional que explicaria nosso vício de estender a lógica privada de afetos e desafetos aos negócios de estado, rejeitando a impessoalidade— como um sinônimo de amabilidade e gentileza.
O óbvio odeia ser negado. A violência que dizima os jovens nas periferias de nossas cidades e gente de todas as idades e endereços na selvageria do trânsito e na roleta-russa dos latrocínios, condenando o Brasil às divisões inferiores do mundo, parece ter encontrado novos canais de expressão política.
Bolsonaro não inventou a tematização política da violência, é claro, mas só no novo contexto apontado por Giannotti é possível compreender que não soe repugnante à moralidade da maioria dos brasileiros o elogio pimpão do capitão reformado a um torturador como Brilhante Ustra. Galgamos um novo patamar em nossa relação com a violência?
Tenho me lembrado de outro capitão, um tal de Eucaristo Rosa. Nunca existiu em carne e osso: é personagem do esquecido romance "Chapadão do Bugre", do escritor e político mineiro Mário Palmério, sucessor de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras.
O misterioso capitão Eucaristo é uma das maiores encarnações literárias da violência brasileira. Enviado ao sertão profundo por um distante poder estatal para resolver um conflito enrolado entre coronéis corruptos, todos com suas tropas de jagunços, Eucaristo, como Jair, é um adepto de soluções simples para problemas complexos. Mata todo mundo.
"Chapadão do Bugre" saiu em 1965, quando a ditadura militar instaurada no ano anterior mal começara a mostrar seus dentes. Sua edição mais recente, da José Olympio, já tem 12 anos e não se acha em lugar nenhum. O que explica muita coisa.