Morte de ciclista campeã mundial mostra que atleta é mais do que uma máquina
O atleta é um inspirador de vida e do movimento. Por isso a morte, como a da ciclista Kelly Catlin, 23 anos, campeã mundial, dos Estados Unidos, pega a todos de surpresa.
O recorde está para o esporte, assim como a liberdade, a igualdade e a transformação estão para a sociedade. É algo que se está em busca permanente.
Assim é a vida de atleta. Diante de uma nova marca ou de um gesto inovador sua rotina é mobilizada para aquela conquista. Entretanto, poucos sabem sobre a vida privada de quem está nessa busca que pode durar anos, como pode não se realizar.
O público que acompanha as competições acessa apenas aqueles poucos minutos em que o trabalho de anos se resume. E nesse jogo entre viver a angústia da busca e o prazer (ou frustração) do resultado, oscila a vida de um ser humano.
Se na época do amadorismo essa era uma procura que envolvida uma marca para a história, na atualidade, há muito mais em jogo. Patrocínios, prêmios, ganhos materiais simbolizam a mesma conquista de uma medalha ou recorde, multiplicando as altas demandas de treinos e competições.
A visibilidade que cerca pessoas assim obriga-as a desempenhar um papel pautado em uma imagem positiva, afirmativa, confiante, como se o medo, a dor, a tristeza e a incerteza não se acercassem dos locais de treino ou do travesseiro no momento do sono.
Kelly Catlin parecia viver esse dilema. Campeã mundial, medalhista olímpica, aluna exemplar. Poucos podiam imaginar a angústia que vivia pela vida que levava e a perda da dimensão do tempo.
Em uma carta enviada à revista especializada em ciclismo VeloNews, seu pai, Mark Catlin, afirmou que ela cometeu suicídio em casa.
Esconder ou negar essas manifestações emocionais é o desafio a ser enfrentado. Atleta é falível, por mais que pareça uma figura mitológica. E a psicologia não é apenas uma ferramenta para fazê-lo render mais nas competições.
O cuidado psicológico envolve o desenvolvimento pleno de um ser que vive no limite e que nem sempre sabe até onde deve chegar e quando deve parar. Muitas das expectativas alheias são assumidas como próprias em função do desconhecimento de si mesmo, gerando psicopatologias não identificadas pela comissão técnica.
Poucos são aqueles que dizem ao atleta que ele não precisa ser o melhor em tudo, sempre. Que a competição eterna, excessiva impede o relaxamento, o descanso, o vazio necessário para que o pensamento flua na direção do desconhecido. A sanidade mental caminha par e passo com a saúde física, por mais que essas instâncias tenham sido separadas.
Como ideal humano, a busca pelo melhor de si é tarefa de uma vida. Jung denominava esse processo de individuação. E deixou claro em seus escritos que poucos seres vivos alcançam esse objetivo em vida, porque a incompletude é essencialmente humana, assim como o erro.
O esporte, como criação cultural, remete a essa busca ilimitada. Que não necessariamente precisa colocar em risco a vida de quem o pratica. Diferentemente de máquinas, os atletas são insubstituíveis e para eles não há peça de reposição. Não exijam mais do que o atleta é capaz de realizar.
Kátia Rubio, professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiros”