Mulheres substituem quase metade de 'poderosos' derrubados pelo #MeToo
Eles transgrediram com impunidade durante anos, e, para as vítimas de seu assédio, parecia que eles jamais sofreriam qualquer consequência. Então saiu a reportagem que detalhou as agressões e o assédio sexual cometidos por Harvey Weinstein, seguida por sua queda das alturas de Hollywood.
Um ano mais tarde, ao mesmo tempo em que o movimento #MeToo é alvo de uma reação acirrada, é possível fazer um apanhado geral de como o caso Weinstein transformou os corredores do poder.
Uma análise do The New York Times constatou que desde a publicação da reportagem-denúncia (seguida dias mais tarde por uma investigação da New Yorker), pelo menos 200 homens em cargos destacados perderam seus empregos depois de serem acusados publicamente de assédio sexual. Alguns deles, incluindo Weinstein, estão enfrentando acusações criminais.
Pelo menos 920 pessoas vieram a público para declarar que um desses homens as sujeitou a assédio ou agressão sexual. E quase metade dos homens substituídos em seus cargos foram sucedidos por mulheres.
Contrastando com isso, no ano anterior à denúncia contra Weinstein menos de 30 pessoas de alto perfil viraram notícia por terem pedido demissão ou sido demitidas após acusações públicas de má conduta sexual. A queda do apresentador da Fox Bill O’Reilly em abril de 2017 revelou ser apenas um indício das transformações que estavam por vir.
“Nunca antes vimos algo como isto”, disse Joan Williams, professora de direito e estudiosa de questões de gênero na Universidade da Califórnia em Hastings.
“As mulheres sempre foram vistas como sendo profissionais de risco porque podem fazer alguma coisa como ter um bebê. Mas hoje, homens estão sendo vistos como contratações de risco.”
O assédio sexual está longe de ter sido eliminado dos locais de trabalho. As leis federais ainda não garantem proteção plena a setores enormes de mulheres, incluindo as que trabalham como freelancers ou em empresas com menos de 15 funcionários. A adoção de novas políticas nos locais de trabalho tem pouco efeito se não for acompanhada por transformações culturais mais profundas.
E, como deixou clara a batalha para a confirmação de Brett Kavanaugh para a Suprema Corte, os americanos discordam em relação a como os acusados de erros de conduta sexual devem ser responsabilizados e quais evidências devem ou não ser aceitas.
Mas a análise mostra que o movimento #MeToo abalou e continua a abalar as estruturas de poder nos setores mais visíveis da sociedade. O NYT reuniu casos de pessoas proeminentes que perderam seu cargo principal, posições importantes de liderança ou grandes contratos e cuja queda foi coberta publicamente pela imprensa.
Quarenta e três por cento desses homens destacados foram substituídos em seus cargos por mulheres. Destas, um terço está na mídia, um quarto no governo e um quinto no mundo do entretenimento e das artes.
Por exemplo, Robin Wright tomou o lugar de Kevin Spacey como protagonista do seriado House of Cards, Emily Nemens substituiu Lorin Stein como editora da The Paris Review e Tina Smith assumiu o lugar de Al Franken no Senado do Minnesota.
As mulheres estão começando a ganhar poder em organizações que foram abaladas pelo assédio sexual, e os efeitos disso são potencialmente de longo alcance.
“Acho interessante quantas pessoas vêm para mim e dizem ‘obrigada por intervir para cuidar do problema quando foi preciso’”, disse Tina Smith. “Isso é algo que muitas mulheres fazem boa parte do tempo, não é?”
Nomear uma mulher para a liderança não é garantia de transformações. Já houve casos de mulheres que assediaram e que acobertaram assédio. Algumas mulheres enfrentam o chamado “penhasco de vidro”, em que mulheres são escolhidas para a liderança em tempos de crise organizacional, quando as chances de fracasso são maiores.
E, embora a parcela de mulheres que ascenderam ao poder na esteira da queda de Weinstein seja significativa, as mulheres ainda estão imensamente sub-representadas no topo das instituições americanas.
Pesquisas já mostraram repetidas vezes que as mulheres tendem a liderar de modo diferente. De modo geral, elas criam ambientes de trabalho mais respeitosos, onde o assédio tem menos chances de ocorrer e onde as mulheres se sentem mais à vontade em denunciá-lo quando ocorre.
As líderes mulheres tendem a contratar e promover mais mulheres, a pagá-las mais igualmente e a tornar as empresas mais lucrativas. As mulheres deixam que sua experiência de vida e sua visão de mundo contribuam para as decisões que tomam, e isso pode ajudar nos negócios, já que são as mulheres que fazem a imensa maioria das decisões de compra.
No governo, as mulheres são comprovadamente mais colaboradoras e bipartidárias; elas promovem mais políticas públicas que apoiam mulheres, crianças e o bem-estar social.
Tem sido esse o caso no Congresso, segundo Tina Smith, que é democrata. Em um Senado altamente polarizado, as mulheres tendem a compartilhar responsabilidades com seus colegas de ambos os partidos, mais que os homens, ela disse, e as 23 senadoras se reúnem mensalmente em um jantar.
“Acredito que você tem sucesso e obtêm realizações se nutre relacionamentos com pessoas”, disse a senadora. “Essa é a base para realizar alguma coisa –no mundo legislativo, com certeza.”
Um exemplo: ela e a senadora republicana Lisa Murkowski, do Alasca, descobriram que ambas trabalharam no oleoduto Trans-Alasca quando estavam no colegial. O vínculo que formaram graças a essa experiência em comum as ajudou quando elas uniram suas forças para apresentar uma legislação sobre saúde mental que foi incluída na lei de resposta à crise dos opiáceos aprovada no mês passado.
Nos setores da mídia noticiosa e do entretenimento, muitas mulheres que assumiram cargos antes ocupados por homens mudaram o tom e o conteúdo do que oferecem ao público. Em alguns casos, as consequências do #MeToo moldaram suas decisões.
Jennifer Salke, que assumiu o lugar de Roy Price na direção da Amazon Studios, disse que a Amazon precisa de “mais séries grandes e atraentes para mulheres”. Ela já anunciou contratos com as atrizes Lena Waithe e Nicole Kidman, entre outras.
Desde que Tanzina Vega assumiu o lugar de John Hockenberry como apresentadora do programa de rádio público The Takeaway, ela já produziu vários episódios sobre gênero, incluindo alguns sobre masculinidade, a indignação das mulheres e a intersecção entre gênero e raça. São tópicos que ela já cobria havia anos, mas que, segundo ela, hoje fazem parte da discussão nacional.
“Não acho que seja necessariamente por eu ser mulher, mas é apenas que, como mulher e como latina, eu sei quando a discussão não tem sido sobre mulheres. Sou profundamente sensível a isso”, disse Vega, ex-repórter da CNN e do The New York Times.
As experiências pessoais de mulheres, incluindo a maternidade, podem transformar os locais de trabalho em lugares mais acolhedores para outras mulheres. É o que espera Christine Tsa, executiva-chefe da firma de investimento tecnológico 500 Startups, onde ela tomou o lugar de Dave McClure no início de 2017, após uma investigação interna sobre o comportamento dele em relação a mulheres na comunidade tech.
“Como executiva-chefe, optei por ser mais tolerante nessa questão –por exemplo, se tenho de levar um de meus filhos a uma consulta médica —, então espero que isso crie em ambiente em que as pessoas não precisem achar que têm que esconder o fato de terem obrigações familiares”, ela explicou.
“É claro que um chefe homem também pode ser sensível a essas coisas, mas ajuda quando existe uma empatia com a situação das mães.”
Mas há um limite às transformações que podem ser efetuadas pelas mulheres que ascenderam na hierarquia profissional –elas ainda operam em um sistema dominado pelos homens.
Mais de 10% dos homens expulsos de seus cargos já tentaram voltar ou manifestaram esse desejo, e muitos deles não chegaram a perder seu poder financeiro.
O humorista Louis C.K. subiu ao palco do Comedy Cellar em Nova York recentemente, levando a perguntas sobre quanto tempo é o suficiente para as pessoas serem banidas de seu campo profissional e quem toma essa decisão.
O radialista Garrison Keilar relançou The Writer’s Almanac como podcast e teria recebido US$ 275 mil (cerca de R$ 1 milhão) por um acordo pelo qual a Rádio Pública do Minnesota recoloca no ar episódios de seu catálogo de programas passados.
Jerry Richardson, fundador e ex-proprietário do time de futebol americano Carolina Panthers, foi multado em US$ 2,75 milhões (R$ 10 milhões) pela NFL depois de ser acusado de assédio sexual –mas vendeu o time por pelo menos US$ 2,2 bilhões (R$ 8 bilhões), um valor recorde.
Quando pessoas acusadas de assédio sexual voltam ao poder sem fazer reparações –ou nunca chegam a perder seu poder, pelo menos financeiramente—, isso limita o potencial do movimento pós-Weinstein de transformar o exercício do poder na sociedade americana.
Esses homens não passaram pelo mesmo tipo de trauma que as vítimas de assédio sexual, disse Tarana Burke, a fundadora do movimento #MeToo, que ela lançou em 2006 para apoiar vítimas de assédio e violência sexual (a hashtag viralizou um ano atrás quando mulheres passaram a usá-la amplamente para divulgar seus relatos de assédio e violência sofridos).
E muito poucos deles, disse Burke, demonstraram ter assumido a responsabilidade por seus atos ou pedido desculpas pessoalmente às pessoas que prejudicaram.
“Onde estão o exame de consciência pessoal, a tomada de responsabilidade?”, ela disse. “Talvez, se víssemos alguma evidência disso, pudéssemos ter uma discussão mais substancial sobre o caminho para a redenção.”
Enquanto isso, dizem essas mulheres, há mulheres qualificadas em número mais que suficiente que estão preparadas para assumir os cargos de poder desses homens.
“Várias de nós que assumimos esses cargos fomos promovidas porque éramos realmente boas nesses trabalhos”, disse Tanzina Vega, a radialista.
“Temos as habilidades, a experiência, a ética de trabalho e a inteligência para darmos conta do recado, e está na hora de nós assumirmos esse trabalho.”