Na condição de ser humano, o atleta sofre com a dor e a derrota

Desde que o COI fez um chamamento à comunidade olímpica internacional propondo diálogo, importantes transformações aconteceram no cenário esportivo. Temas como transparência, igualdade de gênero e combate ao doping saltaram para o topo da chamada Agenda 20+20, documento que norteia as ações presentes e futuras do Movimento Olímpico, juntamente com a carta olímpica.

Nesse processo, o atleta finalmente ganhou um destaque especial. Isso parece óbvio porque não há legado maior dos Jogos Olímpicos ou do Movimento Olímpico que o atleta. E o que se observa ao longo da história é o registro de poucos feitos muito grandiosos e o esquecimento de muitas pequenas conquistas que são a razão de ser de todo o sistema.

Destaco que as ações grandiosas estão quase sempre associadas à conquista do pódio, evidência inegável.

Entretanto, aproximadamente 95% dos atletas olímpicos chegam até o quarto lugar. Considerados derrotados, são menos respeitados e muitas vezes apagados de memórias e documentos.

As recomendações da Agenda 20+20 indicam uma transformação no papel social daquele que sua a camisa.

Alçado à condição de real protagonista dos Jogos Olímpicos, o atleta deixa de ser um exímio executor de gestos habilidosos e passa a ser a figura central de todo o universo olímpico. Apoio e respeito começam a sair do papel e se transformam em ações que afirmam a importância de quem faz o espetáculo esportivo ser o que é.

Essas determinações se desdobram em uma campanha cujo tema é o atleta como modelo ideal. Parece mais do que justa essa deferência, afinal, sem essa presença não há Jogos, nem nada do que foi construído ao longo do último século tendo como referência essa competição.

Toda a discussão sobre valores, a importância social do esporte e a busca pela paz passa necessariamente pelos feitos quase divinos de quem realiza um gesto tão refinado, preciso e espetacular como o atleta. Mas, na condição de modelo ideal, ele corre o risco de ser levado a ser aquilo que não é. 

Na condição de ser humano, ele é também inacabado, imperfeito, sofre com a dor, o medo, a solidão e a derrota. É agente e sujeito de tudo aquilo que acontece no lugar e no momento em que vive.

E, para além de ser atleta ele é também o realizador de outros tantos papéis sociais possíveis de lhe serem atribuídos: filho, pai, estudante, soldado, artista, ativista. E aí está a beleza desse fenômeno: a imortalidade olímpica se dá por um feito realizado que necessariamente passa pela pessoa que o atleta é.

Esse tema me ocorre em função do cinquentenário de uma cena histórica protagonizada por parte dos 5% dos atletas olímpicos.

Eles foram, viram e venceram na Cidade do México em 1968. Vitoriosos na prova dos 200 m rasos, Tommie Smith, Peter Norman e John Carlos fizeram de um pódio olímpico uma cena icônica, tornando uma competição esportiva mais do que uma disputa. 

Tommie Smith e John Carlos eram estudantes universitários e cidadãos. Viviam intensamente os desdobramentos da luta pelos direitos civis em seu país, marcado pela segregação racial. O gesto executado no pódio foi o registro desse conjunto complexo que é ser alguém, protagonista de muitos papéis sociais. Banidos dos Jogos Olímpicos, foram perpetuados na história.

A menção a esse fato 50 anos depois comprova a tese de que, de fato, o atleta é um modelo ideal. Ainda que isso possa significar subversão a um modelo imposto.

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