Na Flip, espectador insinua que Geovani Martins só é incensado por morar na favela

A mesa que reuniu o escritor carioca Geovani Martins e Colson Whitehead, na tarde deste sábado (28) na Flip, contou com uma pergunta definida pelo mediador, Pedro Meira Monteiro, como “provocadora”. Na verdade, a pergunta trazia uma insinuação maliciosa.

Em um papel levado até o palco, alguém da plateia, que não foi identificado, perguntou a Geovani Martins se sua literatura teria atenção e seria incensada caso ele não tivesse a biografia que tem e não morasse na favela do Vidigal, no Rio.

Martins, que lançou o livro “O Sol na Cabeça” (Companhia das Letras) em março, vem de uma família pobre, só estudou até a sétima série e é apontado como uma das revelações da literatura brasileira neste ano.

Após um silêncio constrangido da plateia, o escritor, revelado nas oficinas da Festa Literária das Periferias, respondeu de forma concisa:

“Quem pode responder a essa pergunta são os leitores, né? Meu trabalho é o mesmo. Se você recebe de um jeito ou de outro…"

Meira Monteiro ofereceu interpretações embasadas sobre a obra dos dois autores, mas na maior parte das vezes Whitehead, por exemplo, não deu sinais de embarcar nas análises.

A discussão avançou quando a conversa se direcionou para temas políticos. O mediador notou, por exemplo, que na obra de Martins quase não há pais e as mães são mais presentes.

“Toda mãe vai se preocupar com a vida dos filhos. Mas essas mães têm medo de uma interrupção da vida deles. É uma mãe que tem medo de perder o filho de 12, 15 anos, de enterrar um filho de depois enterrar outro”, disse.

O autor contou, por exemplo, que sua mãe começou a pagar um plano funerário para ele e os irmão quando os dois tinham 10 e seis anos respectivamente.

“Quando o personagem do meu conto ‘Rolézim' tá ali [achando que vai morrer], a primeira coisa em que ele pensa não é nem em deixar de existir, mas [se preocupa por] deixar a mãe sem outro filho."

Os dois autores comentaram ainda o fato de não gostarem de descrever a cor de seus personagens, embora pelo contexto seja possível saber que são negros.

“Jogo com as expectativas do leitor se o personagem é branco ou negro. Se Hemingway escreve ‘o garçom me deu uma bebida’ [e não diz a cor], você já sabe —as pessoas negras são racializadas, enquanto as brancas são só pessoas”, disse Whitehead.

Já Martins contou que, quando começou a ler autores como Jorge Amado, ainda jovem, percebeu que a cor de cada personagem só era mencionada quando se tratava de um negro.

“Eu dizia: ‘Quando for escrever um livro, vou descrever só os brancos’”, disse, arrancando risos da plateia. “Percebi a potência que isso carregava, no sentido de revelar situações às quais a população está exposta e vulnerável.”

Questionado, Whitehead disse não poder comparar, quanto à questão racial, o Brasil que visitou nos anos 1990 e o que conhece agora.

“Quando estive aqui, fui parado duas vezes pela polícia, o que já me deu uma ideia [do racismo no país]. Mas esse festival é uma bolha de educação e gentileza, então não posso dizer se o Brasil mudou”, afirmou.

 

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