Na próxima crise, dinheiro terá de cair do céu
No dia em que completou o mais longo ciclo de crescimento desde 1854, os Estados Unidos anunciaram um corte em sua taxa de juros.
Foram 121 meses de expansão desde junho 2009, quando o país começou a sair da Grande Recessão de dez anos atrás. Na Europa, várias das 19 economias do euro também se recuperaram no período.
São boas notícias na superfície, mas elas escondem problemas. O principal é que, para superar o desastre global de 2008-2009, os governos das duas maiores zonas econômicas do mundo gastaram muito da munição convencional disponível. Isso para obter um crescimento bem abaixo do registrado em ciclos anteriores de melhora.
Numa próxima crise, segundo caricatura cada vez mais presente, talvez seja preciso jogar dinheiro de helicóptero para estimular o consumo e o crescimento.
Nos últimos dez anos, os bancos centrais das economias avançadas criaram do nada US$ 15 trilhões (mais que o PIB da China) para comprar títulos de governos e empresas e para estímulos monetários visando tirar o mundo da maior crise desde a Grande Depressão de 1929.
Isso é quase como jogar dinheiro de helicóptero, mas por canais tradicionais. Os US$ 15 trilhões significaram mais oferta de dinheiro na praça, o que fez cair as taxas de juro (o custo do dinheiro) para empréstimos novos, dívidas antigas e na remuneração de depósitos bancários.
O estímulo à oferta de dinheiro barato é de tal ordem que, na Europa, quem deixar 10 mil euros aplicados no banco durante um ano poderá receber o equivalente a 9.960 euros ao final. Isso porque o juro pago na remuneração do depósito é 0,4% menor do que a inflação corrente.
Por trás disso há a tentativa de estimular as pessoas a gastar, aquecendo a economia. Mas isso não tem sido fácil.
O curioso é que, diante da falta de opções convencionais para proteger o dinheiro, muitos investidores institucionais e pessoas físicas abonadas têm recorrido à clássica compra de ouro —pressionando o valor do metal— ou a outra saída heterodoxa (ver quadro abaixo).
Pela primeira vez na história a demanda física por notas de US$ 100 ultrapassou a de cédulas de US$ 1 no mundo. Segundo Ruth Judson, economista do banco central dos EUA, investidores vêm entesourando dólares como “porto seguro” diante dos juros negativos (menores do que a inflação) e incertezas econômicas e geopolíticas, como guerras comerciais.
Para Reza Moghadam, ex-economista-chefe do FMI para a zona do euro, o risco dessa transferência de depósitos bancários para dinheiro vivo, que ocorre sobretudo na Europa, é a desestabilização da atividade bancária e da economia.
Mesmo assim, o BC americano cortou os juros e o europeu prepara-se para fazer o mesmo, possivelmente aumentando também a compra de títulos de governos e empresas para injetar dinheiro novo na Europa.
Há uma controvérsia hoje sobre o que estaria por trás da debilidade que tomou conta da economia mundial, marcada também por um aumento recorde no endividamento de governos, empresas e famílias.
Na série Desigualdade Global que a Folha vem publicando, vários economistas apontam para a concentração da renda nas mãos de cada vez menos pessoas como um dos principais motivos, já que a grande base consumidora no mundo, sobretudo no Ocidente, viu encolher seus rendimentos do trabalho.
Algumas das soluções apontadas, como a taxação progressiva sobre os mais ricos, exigiriam compromissos multilaterais que estão em refluxo, como atestam Donald Trump nos EUA e o brexit na Europa –dois fenômenos gerados por uma classe média que quer de volta dias melhores.
Diante da perspectiva de uma nova crise, é boa a imagem do dinheiro caindo de helicóptero. Mas, antes disso, coisas estranhas e não necessariamente boas podem acontecer.