Nascem duas estrelas
Simone Tondo achou estranho quando recebeu a quarta ligação de um mesmo número desconhecido. Na quinta chamada, tomando café num sábado de manhã com sua família, resolveu atender.
“Disseram que era do Michelin e perguntaram se era verdade que meu aniversário estava próximo”, conta o chef italiano. “Não falaram mais nada.”
Raphael Rego achou improvável, também, receber uma ligação do venerado guia gastronômico —no dia da própria cerimônia. “Queriam saber se eu não me incomodaria de aparecer naquela noite mesmo na festa”, diz o chef brasileiro. “Os detalhes eles me dariam depois.”
As semelhanças entre as histórias desses dois novos chefs “estrelados” terminam por aí. Ambos logo perceberam que as tais ligações significavam que eles tinham conquistado a tão sonhada primeira estrela do Guia Michelin em Paris —Raphael pelo Oka, Simone pelo Racines.
Se o nome do italiano lhe é familiar, talvez seja porque já escrevi sobre ele aqui ao me despedir de um outro restaurante seu na cidade, o Roseval. O brasileiro, conheci agora, num sensacional jantar na sua mesa premiada.
Quis conversar com os dois para entender um pouco não só a reação de ambos às estrelas, mas também os caminhos que os fizeram chegar até elas.
Imagine ser reconhecido no centro da gastronomia mundial? Isso deve mexer com o coração deles —e também com suas panelas!
“Nada muda”, afirma Simone, sem demonstrar sequer um bafejo blasé. Perguntei se teve champanhe com a equipe no dia seguinte à premiação, mas não houve nada: “Tínhamos clientes para servir e, agora, uma estrela para honrar”.
O que talvez tenha mudado para o Racines foi a clientela. “Com o Michelin, os americanos vêm mais”, explica. E os franceses? “Já nos conheciam e sabem que vamos continuar fazendo o mesmo que antes.”
Raphael, no entanto, não esconde a alegria de ter sido escolhido pelo guia. “Tenho 34 anos, mas saí do Brasil com 18 para trabalhar com cozinha. Vivi na Austrália, depois em Paris. E, aqui, aprendi com mestres com bem mais estrelas que eu”, brinca.
“Quando resolvi partir para um voo solo, sabia que queria colocar a gastronomia brasileira no mesmo patamar da francesa. E tenho orgulho de o Michelin ter reconhecido isso.”
Aos 30 anos, Simone já viveu altos e baixos na cena gastronômica parisiense. Trocou seu Roseval, que estava no auge, por um projeto sofisticado, o Tondo —que não deu certo.
Voltou para sua Sardenha, reencontrou seu eixo e voltou à simplicidade que o deixou famoso. “O que foi reconhecido no Racines, além da comida, claro, foi a atmosfera que consegui criar lá”, explica o chef, lembrando que o guia avalia todos os detalhes da experiência de comer fora.
Foi isso que certamente também ajudou o Oka a ficar estrelado. Mas é impossível, especialmente para nós, brasileiros, não se surpreender com as releituras ultracriativas nos pratos de Rapahel.
“Os franceses vêm procurar esse sabor brasileiro”, conta. “Mas eu inverto as expectativas com uma nova interpretação da nossa cozinha.”
Para isso, ele trabalha com 80 ingredientes importados do Brasil, da rapadura preta ao feijão-fradinho pequeno, passando pela priprioca.
Ao longo das duas conversas, percebo que é impossível comparar esses dois talentos —nem sequer suas trajetórias.
Simone é um “natural”. Raphael, dedicado. O cardápio do primeiro é franco-italiano atemporal. O do segundo, um projeto meticuloso de um novo paladar abrasileirado. O italiano não abandona os erres da sua Itália nem nas conversas menos informais. Nosso conterrâneo fala como um verdadeiro parisiense.
Mas, independentemente do sotaque, os dois dão a mesma (e divertida) resposta para minha pergunta final: “O que vocês vão fazer agora com essa estrela?”. “La garder!”, diz cada um deles com seu erre tão peculiar —com a língua dura no céu da boca de Simone; com o ar raspando na garganta de Raphael.
Em português, tudo o que eles querem agora é segurar essa estrela. E tudo que eu quero é poder comer no Oka e no Racines de novo.