Negras em revista

"Black is beautiful", o slogan icônico do movimento negro norte-americano nos anos 1960, parece ter levado 50 anos para ser mais do que um aceno politicamente correto da indústria da moda, que dita para muita gente o que é ou não bonito.

Este setembro contabilizou um recorde histórico de capas de revistas de moda e cultura norte-americanas e europeias estampadas por mulheres negras.

Foram quase 20 títulos, entre a Elle americana, canadense e inglesa, as edições da Vogue America, Paris e British, a Marie Claire que circula nos EUA e a do Reino Unido, a Porter, revista da loja de ecommerce de luxo Net-a-Porter, entre outras.

Nelas, figuram muitos tons da pele negra, da atriz irlandesa de origem etíope Ruth Negga à mexicana-queniana Lupita Nyong’o, passando pelas já onipresentes Beyoncé e Rihanna.

A edição de setembro é considerada a mais importante do ano no circuito fashion no hemisfério Norte porque é quando as coleções de outono e inverno chegam às lojas. Este é, portanto, o mês de arrecadar mais em anúncios. E, se uma boa capa é pré-requisito de sucesso editorial (e financeiro), as escolhas deste setembro não devem ser apenas coincidência.

Há quem argumente que o caso é uma expressão genuína da inclusão real dos negros, resultado do intenso debate atual sobre identidade e diversidade. Mas há quem aponte certo oportunismo na forma como a indústria tem retratado a negritude, abordada como tendência —algo intrinsecamente descartável na temporada seguinte.

Se for isso, trata-se, claro, de uma armadilha em que as publicações abusam da inclusão apenas para parecer vanguardista ou para surfar no sucesso negro na música e nas telas —"Pantera Negra”, que retrata super-heróis negros, bateu recordes de bilheteria pelo mundo.

Inclusão de fachada?

Também não deve ser coincidência que, no Brasil, a inclusão do negro na beleza e na moda não seja tão evidente, ainda que tenhamos uma proporção de pretos e pardos (54% dos brasileiros) quatro vezes maior que a dos EUA (onde 13% da população é negra e menos de 3% é miscigenada).

Por aqui, nos últimos anos, as mulheres negras passaram a protagonizar mais campanhas e capas de revistas. Mas o fato de pesquisas apontarem que 94% dos negros brasileiros não se sentem representados nas peças publicitárias dos produtos que gostariam de consumir deixa claro que estamos muito longe do equilíbrio nesta equação.

Há muitos indícios de que esta inclusão ainda é fenômeno de fachada, salvo raríssimas exceções. Basta inverter o sentido da lente da câmera que focaliza a bela modelo negra para revelar um backstage em que a maioria branca é absoluta nos cargos de tomada de decisão. Os negros, via de regra, estão ali para servir cafezinho e remendar barra de calça.

Fora do Brasil, a mudança neste cenário parece mais consistente. Há estilistas negros em grandes maisons e cada vez mais editores negros nas publicações do setor. A Vogue britânica hoje é comandada pelo primeiro editor-executivo negro de sua história, Edward Enninful.

Crespos e armados

O principal empurrão neste aumento de visibilidade fashion está no recente fortalecimento da negritude entre as mulheres comuns. Cansadas de se submeter à chapinha ou à escova progressiva em busca de embranquecimento (até então sinônimo de reconhecimento), elas abandonaram o padrão loira de olhos claros e cabelos lisos como ideal de beleza.

Para dar conta dessa mudança de autoimagem sem perder mercado, a indústria precisou encrespar, armar e escurecer sua padronagem.

"As mulheres negras estão pedindo que seus traços sejam respeitados, sem afinar o nariz, sem colocar aplique no cabelo. Elas querem uma beleza negra natural: o nariz grande, o bocão", explica o estilista Isaac Silva, 30, cuja marca já vestiu negras empoderadas como a atriz Camila Pitanga, a cantora Elza Soares e a escritora Djamila Ribeiro. "A demanda é: se não me representarem, não vou comprar", diz.

Basta dar uma volta nas ruas de São Paulo, ou de Chicago (de onde escrevo este texto), para ver que trançados e crespos inspirados nos black powers estão mais para regra que para exceção.

Para a escritora Joice Berth, autora de "O Que É Empoderamento?", é inegável que os negros estejam vivendo um momento de maior visibilidade. "O que me preocupa é o que vem depois deste momento", alerta. “Representar não é apenas colocar uma mulher negra numa capa de revista. O problema do racismo é estrutural.”

Padrinhos e madrinhas

E tudo indica que, sem diversidade real no backstage, não existe inclusão de verdade naquilo que se vê. Por isso, um dos poucos desfiles da história da moda brasileira a apresentar uma proporção de negros maior que a de brancos tenha sido da marca Lab Fantasma, do rapper Emicida. “Olhamos para as passarelas brasileiras e parece que estamos olhando para a Suécia”, ironizou o artista.

"Precisamos perguntar para os veículos e as marcas quantos negros trabalham ali. Senão, essa visibilidade vira apenas uma questão de marketing", avalia Isaac Silva.

Consciente desse desajuste, a diva pop Beyoncé, que ilustra a capa da Vogue America de setembro, fez uma exigência ao assinar seu contrato: ela escolheria a equipe da produção das fotos. E levou para o set o jovem fotógrafo, Tyler Mitchell, 23, o primeiro negro a clicar uma capa da bíblia fashionista norte-americana em 125 anos de história. Sem esse empurrãozinho, o fato talvez levasse alguns anos para acontecer.

No texto ilustrado pelas imagens criadas por Mitchell, a cantora relembra: "Quando eu comecei, 21 anos atrás, me disseram que eu nunca estaria numa capa de revista porque negros não vendem [revistas]. Isso claramente se provou ser um mito."

No Brasil, onde o gosto por teorias que exaltam nossa miscigenação parece ser tão grande quando nossa recusa em espelhar essa característica diversidade na vida prática, a baixa participação de negros na moda, na publicidade e na produção audiovisual é apenas o aspecto mais visível de uma representação desigual que está em toda parte.

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