'No Portal da Eternidade' faz da loucura de Van Gogh um caso de lucidez
O cinema não se cansa de Vincent van Gogh. Não bastasse Kurosawa, Robert Altman e Vicente Minelli terem registrado as suas versões, a genialidade do artista holandês —entrelaçada à sua fama de louco— "merecia mais uma chance de se pronunciar”. Ou, ao menos, assim tem declarado Julian Schnabel sobre seu “No Portal da Eternidade”, a nova cinebiografia do pintor.
Artista plástico renomado antes de tornar-se cineasta, Schnabel —famoso por “O Escafandro e a Borboleta” (2007)— construiu sua carreira a partir de um impulso específico: afeito a histórias reais, o norte-americano trouxe às telas personagens que, soterrados pelas mais diversas circunstâncias da vida, lutaram para que a arte e a potência criativa não se deixassem destruir. Retratar Van Gogh seria, portanto, uma questão de tempo.
Paris, final do século 19. Tomada de assalto por novos movimentos artísticos e frenética pelos primeiros efeitos da era industrial, a capital francesa girava como motor de novidades. De um lado, o fascínio por um mundo em ebulição. De outro, a opressão de sentir-se esmagado pelas novas dinâmicas sociais.
Viver na metrópole transformava-se em desafio. Entre testemunhar uma vida calcada em inovações ou distanciar-se lamentando seus impactos, Van Gogh (Willem Dafoe, indicado ao Oscar) opta pela segunda opção. Na busca pela beleza que a cidade corroeu, muda-se para os pacatos vilarejos de Arles e Auvers-sur-Oise, onde viveria seus últimos anos em reclusão e tristeza.
É neste período em que a obra se situa, circulando por suas cenas figuras como o pintor Paul Gauguin (Oscar Isaac) e o irmão Theo van Gogh (Rupert Friend), além de retratar a famosa passagem de Vincent pelo manicômio local, internado por cortar a própria orelha.
Até aí nada novo. Já ouvimos essa história. Já vimos essa história. Mas se Van Gogh merecia mesmo mais uma chance de se pronunciar, como afirma Schnabel, a que se deve essa nova investida?
Como insiste o diretor —e o resultado final lhe dá razão—, “No Portal da Eternidade” não é (ou não se resume a) um retrato do pintor. Mais do que uma apreciação biográfica, o filme traz ao primeiro plano uma discussão que não se esgota: quando a febre pela inovação se fixa como valor maior, algo de nossa humanidade se perde.
Fortes feito escultura —como descreve Gauguin—, as pinceladas de Van Gogh não são apenas uma tentativa de resistir à fugacidade dos novos tempos, mas, também, um manifesto pela eternidade. Seja na apreciação da natureza campestre ou nos poucos vínculos afetivos que não se deixaram corromper, a missão do pintor (e a nossa, agora) é resgatar tudo aquilo que não envelhece, que não padece, apesar do tempo.
Mais do que “Com Amor, Vincent” (Dorota Kobiela/Hugh Welchman, 2017), animação indicada ao Oscar do ano passado —e inteiramente composta por pinturas a óleo—, “No Portal da Eternidade” resgata o verdadeiro espírito da forma pós-impressionista de Van Gogh. O que lá era sofisticação literal (afinal, uma animação em pintura), no filme de Schnabel se revela no jogo de foco, na escolha de lentes, nos movimentos de câmera agitados feito pincel.
Enquanto a vasta maioria das cinebiografias sobre o pintor estava mais preocupada em reconstituir a sua trajetória, aqui a lógica é a da reconstrução; captar o espírito de uma época, de um personagem e, investigando seus conflitos, atualizá-los como ensinamento. É assim que a insanidade de Van Gogh ganha o nome de lucidez e um grande filme se constrói.