O diabo veste olheiras
Maternidade é a magia do amor, a plenitude da entrega, o ápice da felicidade! Os humanos-unicórnios-da-fofura-suprema estão sempre intoxicando o mundo com seus slogans da superficialidade maníaca. Adoram fazer publicidade instagramada a respeito do entusiasmo que deveras não sentem. Nem o branco de seus dentes é real!
Se for para sentir algum deleite insuportavelmente verdadeiro, lembremos nossos 20 anos, quando capotávamos até o meio-dia do sábado, tínhamos pais que ainda nos ajudavam financeiramente e nossa bunda estava mais perto da nuca do que do terceiro subsolo do prédio.
Me venderam a tal completude materna, me falaram que eu passaria o dia cantarolando de tanta alegria e que eu sentiria que enfim minha passagem por esta vida faz algum sentido.
Amo minha filha mais do que sorvete de churros, mas quem propaga essa fantasia de aprazimento absoluto está declaradamente agindo de má fé ou faz parte do seletíssimo grupo de pais de bebês que nanam a noite inteira. Mas reza a lenda que, se você tem um rebento que dorme bem, não pode espalhar o sortilégio por aí, caso contrário o feitiço se quebrará. Quer dizer, os pais incansavelmente felizes, que saem por aí contando vantagem, ou mentem ou estão em vias de romper contrato com os braços de Morfeu.
Não dormir é uma das mais conhecidas e enlouquecedoras formas de tortura. O diabo, muito antes de qualquer grife famosa, veste enormes olheiras.
Desde que desisti de repousar, já me demiti sete vezes do meu atual emprego e já me separei nove vezes do meu atual marido (em ambos os casos, sempre sou readmitida na manhã seguinte). Já cortei relação 14 vezes com minha mãe, já rompi para sempre com alguns parentes (sobretudo com os que votam em fascistas) e deletei da minha vida qualquer amigo que me telefone em vez de mandar áudio ou que mande muitos áudios em vez de simplificar tudo em mensagens de texto ou que mande muitas mensagens de texto em vez de me deixar em paz com minha nenê.
Quando visitar um bebê, fique pouco tempo. Em vez de levar presentes, se ofereça para cuidar da criança enquanto a mãe dorme. Se a mãe estiver impecavelmente medonha, não diga nada. Se durante o abraço de “oi” a mãe cochilar eternamente em seu ombro, não se mexa.