O estado de mal-estar social
Roma, 40 graus. Na praça de São Pedro, filas intermináveis de turistas esperam para visitar a basílica. Entramos pelo portão de entrada no Vaticano para a Casa Santa Marta, onde mora o Papa Francisco. Na porta da casa, um carabinieri e um guarda suíço. "São a delegação brasileira? ", abrem a porta.
Já dentro, um funcionário nos dirige a uma sala. Ficamos ali alguns minutos com a jurista Carol Proner, Marinete Silva (mãe de Marielle Franco) e a pastora Cibele Kuss, do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs.
O papa abre a porta, com um envelope branco na mão, e nos convida a sentar em roda, sem nenhum funcionário em volta.
Nada do que pretendia dizer ao papa deve ser grande novidade. O jornal L'Osservatore Romano, o órgão oficial do Vaticano, dois dias antes informava que o número de brasileiros em pobreza extrema passou de 5 milhões a 10 milhões.
Tento pegar a deixa das notícias do dia. Em curto espaço de tempo, a proteção dos direitos humanos sofreu dramático enfraquecimento no Brasil. A consequência prática é um estado de mal-estar social.
Direitos econômicos e sociais restringidos pela PEC do teto e pela reforma trabalhista. Direitos civis e políticos ameaçados pelo enfraquecimento do Estatuto do Desarmamento, o reempoderamento dos militares, o retorno da Justiça Militar para crimes comuns de militares e prisões de professores em universidades federais. Proteção do meio ambiente, dos povos indígenas e a luta contra o racismo praticamente abandonadas. Mudanças profundas nas políticas públicas jamais legitimadas antes por eleições.
Sublinho os riscos criados quando uma agenda de inclusão social, econômica e política —como a estabelecida pela constitucionalidade de 1988 e pela política de Estado de direitos humanos— é abandonada.
Nesse mesmo dia, sete relatores da ONU alertavam para a gravidade dos retrocessos em série nos últimos dois anos, culminando com o primeiro aumento da mortalidade infantil em mais de duas décadas de progresso.
A brutal e ainda inexplicável morte de Marielle Franco, representada ali no diálogo emocionante com o papa por sua mãe, é o símbolo mais forte da violência e da fraqueza da democracia no Brasil. Essa violência tem mensagem clara: falar pelos marginalizados implica grave risco. O Brasil, em 2017, foi o país do mundo com o maior número de assassinatos de defensores de direitos humanos.
É neste contexto que o Brasil caminha para uma eleição na qual um dos principais candidatos, o ex-presidente Lula, poderá ser iniquamente excluído. Ele vem sendo sistematicamente silenciado pela interferência da Justiça, que assumiu o papel de protagonista político. As forças conservadoras predominantes no Judiciário asseguram a proteção aos grupos políticos governistas afetados por denúncias.
Superar a crise vai levar tempo. Reconstituir o espaço de diálogo e a confiança nas instituições do Estado são agora tarefas ainda mais difíceis do que antes. Que inspirações buscar? A tensão e o retrocesso não são privilégios brasileiros. Difícil encontrar um país em que não se tenham discutido ou implementado restrições de direitos. Igualmente, proliferam as vozes do ódio.
Para o momento mais imediato, é essencial condenar todas as formas de violência e censura. Nesse contexto, relembro como extremamente relevante a condenação absoluta, pelo papa, da pena de morte.
Passados 50 minutos, o papa distribui rosários (que estavam no envelope branco) a todos, recolhe os relatórios e livros que recebeu e diz: "Vou passar ao secretário de Estado". Arrisco: "Vai ser uma trabalheira". Sobraçando tudo com um dos braços, ele se despede de nós e sai como entrou, sozinho, sem ninguém para ajudar ou abrir a porta.