O Executivo e as execuções
A palavra execução traz do latim clássico um ar marcante de frieza administrativa. Termo do vocabulário da Justiça e das leis, "exsecutionis" era arremate, conclusão, ato de dar andamento a processos ou cuidar da aplicação de sentenças.
Em português, o sentido original sobrevive inteiro na "execução penal", mas o alcance semântico da palavra se expandiu em diversas direções, sempre em torno de um núcleo: executar é fazer acontecer.
Certos desdobramentos ficam dentro do campo administrativo, como o que deu no valorizado "executivo", acepção nascida no século 20 para designar uma variedade de profissionais que ocupam cargos de direção em empresas.
Outro sinal do apreço que a cultura devota a "executivo" é o próprio nome do Poder da República, o mais saidinho da trinca. Dono da caneta e da chave do cofre, cabe ao Executivo levar a termo políticas públicas, obras, manutenção da máquina.
Contudo, ao lado desse perfil garboso, o verbo "executar" tem um lado escuro. É sinônimo dicionarizado de matar, assassinar —sobretudo matar com frieza e eficiência.
É fácil perceber como isso aconteceu. O "Houaiss" informa que desde o século 16, quando era um bebê de um século de vida, "executar" tem o sentido de "tirar a vida em nome da lei". Óbvio: já em seu berço o termo tratava de execução legal e penal, como vimos.
Ora, se enforcar um condenado sempre esteve no DNA da execução, a língua é inocente, certo? Não tão depressa. É uma idiossincrasia brasileira o sucesso epidêmico dessa palavra com o sentido que o "Houaiss" chama de informal e ao qual todo cidadão do país se expõe pesadamente há pelo menos um punhado de décadas: o de assassinar.
Atenção: em todas as línguas que adotaram filhotes de "exsecutionis", como inglês, francês e espanhol, existe o sentido de "matar em nome da lei". No entanto, os grandes dicionários desses idiomas que consultei não trazem "assassinar" entre as acepções de executar. Pelo menos no inglês contemporâneo, tal uso existe, mas parece marginal demais para os lexicógrafos. Estamos na frente.
Afinal, basta subtrair da equação a lei e pronto, o matador legal, o carrasco, vira assassino. Há duas formas de fazer isso: em desafio aberto à lei ou por sua deturpação nos moldes que Charles Bronson consagrou: "Eu sou a lei". No primeiro caso, quem executa é o bandido. No segundo, o policial.
Nada disso é novo, como não é novo o apoio que uma parcela significativa da sociedade brasileira dá a grupos de extermínio. Sendo vertiginosamente mais banal em nossa vida do que na de países mais civilizados, a morte violenta deixa pegadas na alma —e portanto na língua que falamos.
A novidade é uma só, e não é pequena: altos escalões do Executivo lançarem abertamente acenos simpáticos e incentivadores a agentes da lei que operam à margem dela, apostando na execução como política de segurança.
O tema desperta paixões, claro. E não é que mesmo assim a velha frieza latina da palavra se faz sentir, como na metonímia hedionda que transforma pessoas assassinadas em "CPFs cancelados"?
O primeiro consultório gramatical que assumi na vida, em 2002, no Jornal do Brasil (eu que nunca fui professor de português), era uma ideia maluca do grande Ricardo Boechat. Desejar que descanse em paz um sujeito tão incansável é até engraçado, mas ele merece como poucos.