O melhor filme de 2018 foi ignorado pelo Oscar
Assisto ao filme “A Mula”, a colheita mais recente de Clint Eastwood, e recosto-me na cadeira da sala para viajar com ele pelas estradas do Texas e do Illinois.
No filme, Clint é Earl Stone, um nonagenário que cruza a América como correio de droga de um cartel mexicano. E as sequências das viagens —ele vai cantando temas clássicos do jazz e da música country pelo caminho— é a imagem mais perfeita da liberdade.
Não sei até quando será possível dirigir assim; o paternalismo do Estado, que só descansa quando os seres humanos se comportarem como robôs sem desejo ou autonomia, já elegeu os carros como alvos a abater.
Parece que, nos próximos anos, a ideia é povoar as estradas com carros sem motorista, afastando do cenário os Earls refratários. Enquanto esse dia não chega, olhemos para as imagens como uma das últimas afirmações de liberdade.
Só que a liberdade individual nunca é exercida no vazio, sem consequências para terceiros. Voltemos ao personagem de Earl. Ele dedicou a vida à floricultura. Como o próprio explica, não há nada mais belo do que semear, cuidar e finalmente ver desabrochar uma flor.
E depois existem os prêmios, os aplausos, os elogios dos pares: Earl é o centro do mundo, mesmo que esse banho de glória o afaste da família. Ele é um artista, um dos melhores; mas é um fracasso como pai e marido.
Como a ex-mulher afirma (a extraordinária Dianne Wiest, no filme), os outros conheceram o melhor de Earl; a família conheceu apenas um Earl ansioso para regressar ao seu palco, deixando os outros para trás.
É por isso que a liberdade das viagens começa a surgir manchada por essa sombra de passado. Até ao momento em que se tornam opressivas, agônicas, desesperadas —e não apenas porque trabalhar para narcotraficantes não é profissão recomendável para um nonagenário. Quando o círculo se aperta, que fazer?
Eis a pergunta mais importante do cinema de Clint Eastwood: o que pode um indivíduo fazer para trazer um mínimo de ordem a um universo em desordem?
Earl sabe o que fazer; todos os personagens dos filmes de Clint Eastwood —o pistoleiro Bill Munny, o técnico de boxe Frankie Dunn, o veterano Walt Kowalski— sabem o que fazer. Mesmo que isso implique, como invariavelmente implica, uma forma de perdição (e de redenção) pessoal.
Existem dois erros comuns sobre “A Mula” que explicam a displicência com que esta obra-prima foi tratada pela crítica (sem falar da indústria dos prêmios: o Oscar ignorou o melhor filme de 2018).
O primeiro é confundir a leveza do tom com a seriedade da empreitada. Sim, “A Mula” pode não ter a “gravitas” de “Gran Torino”.
Mas a suavidade formal, o quase minimalismo narrativo da obra, longe de serem fraquezas, são uma exibição de mestria que costuma visitar os grandes criadores nos anos finais. Será preciso lembrar os últimos retratos de Chardin, as últimas sonatas de Beethoven, as últimas novelas de Philip Roth?
O segundo erro, intimamente ligado com a primeiro, é que “A Mula” constitui o filme-testamento de Clint Eastwood —e é impossível não ver em Earl Stone um alter-ego de Clint “lui même”.
Filmar a sua vida, os seus erros mas também as suas absolvições com pesada grandiloquência seria de um sentimentalismo postiço, impróprio, imperdoável. Clint é um discípulo do jazz —e não é possível tocar jazz dentro de uma camisa-de-forças.
Se “A Mula” é uma despedida para Eastwood, pelo menos como ator, não consigo imaginar melhor despedida. Sem drama ou ressentimento.