O país de Graça
Os relatórios de gestão que o prefeito da pequena Palmeira dos Índios enviou ao governador de Alagoas em 1929 e 1930 ocupam um lugar único na literatura brasileira. E não só porque o alcaide era Graciliano Ramos (1892-1953), que logo tomaria assento na primeira fila dos nossos escritores.
A prosa fina é o que chama a atenção logo de cara —como não tardou a chamar a da imprensa da época, que ajudou a projetar o nome do excêntrico político de província e lhe abrir novos caminhos profissionais.
Num gênero embalado em miasmas nauseantes, o lero-lero administrativo, no qual o burocratês e o semianalfabetismo se irmanam para engambelar o cidadão, Graciliano injetava transparência, concisão e humor: “No cemitério enterrei 189$000 —pagamento ao coveiro e conservação”.
Isso não quer dizer que o prefeito interiorano fosse um simples piadista. Deve-se levar a sério quem escreve isto: “Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos. Saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles”.
Ou ainda: “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.”
Obras de infraestrutura, como a abertura e a conservação de estradas, estavam no topo da lista de prioridades de Graciliano, abaixo apenas de seu gosto pelo drible textual: “Os gastos com viação e obras públicas foram excessivos. Lamento, entretanto, não me haver sido possível gastar mais”.
Embora brilhante, o manejo artístico da língua, daquele português brasileiro afiado que se tornaria marca do autor, é só uma parte da graça do prefeito Graça. Desconfio que nem seja a mais importante.
No prefácio da edição que tenho em casa, lançada em 1992 pela Fundação Joaquim Nabuco, o bibliófilo José Mindlin afirma que esses relatórios “poderiam servir de modelo, e substituir com vantagem muitos calhamaços cansativos” da administração pública.
Que nossos políticos, burocratas e jurisconsultos deveriam aprender a escrever feito gente não se discute. Linguagem obscura na esfera pública é um índice de subdesenvolvimento. Mas, se seria injusto cobrar deles o talento de Graciliano Ramos, mais utópico é imaginar a produção em série de gestores imbuídos de seu feroz.
“Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.” Caxias entre os caxias, Graciliano se dirige com palavras cristalinas, mas terríveis, a um suposto cidadão tão esclarecido e íntegro quanto ele.
Inimigo do patrimonialismo, do conchavo, do jogo de cintura e da corrupção que fundam a política pátria, sabia que falava para poucos. “Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos.” De fato, renunciou pouco depois de enviar o segundo relatório.
É por isso que discordo de Mindlin quando ele fala em transformar esses escritos em “modelo”. No gesto radical de um homem público inusitado —incorruptível, meio maluco, mas que texto!— vislumbra-se um Brasil ideal, impraticável. Em meio à neblina densa que antecede mais uma eleição, o país de Graça brilha como um farol.