O piromaníaco e a Constituição
Por ora, ele está dissolvido na torcida verde e amarela. Mas o defensor da intervenção militar, que surgiu encarapitado no capô do caminhão em camiseta regata com as cores do Brasil na paralisação dos caminhoneiros, voltará. Muito civil baterá continência neste processo eleitoral, reacendendo o debate sobre os limites da liberdade de expressão.
Nenhum direito é absoluto, de acordo com nossa Constituição. Mas uns se sobrepõem a outros: são calibrados para cima quando contrapostos a princípios igualmente constitucionais.
Não significa liberar geral. Exemplo típico de restrição foi dado pelo juiz da suprema corte dos EUA, Oliver Holmes, que, em 1919, afirmou não estar protegido pela constituição quem grita (falsamente) fogo em um teatro lotado.
Serão os defensores da intervenção militar piromaníacos institucionais? A rigor, sim; quem defende a volta do regime militar, com supressão do Congresso, das garantias individuais, entra em choque com o texto constitucional, que, no preâmbulo e em 17 outras passagens, prestigia o regime democrático.
Mas a liberdade de expressão (enquanto for amplificada por vuvuzelas e não fuzis) situa-se numa escala mental de princípios lá no topo. É uma espécie de princípio quatro estrelas.
No julgamento da ADPF 130 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que declarou a Lei de Imprensa incompatível com a atual ordem constitucional, a liberdade de expressão (tipo o direito de gritar pela volta dos milicos) adquiriu um status especial no jogo de ponderação.
O direito a cantar o hino nacional embrulhado no pavilhão verde e amarelo para atiçar as tropas a derrubar o regime democrático –apesar de eventual enquadramento em tipos, artigos, previstos na legislação infraconstitucional– deve ser garantido.
Como disse, sem abusar das metáforas, em 1958, o ministro da "Supreme Court" americana, Benjamin Cardozo: “a liberdade de expressão é condição indispensável ao exercício de todas as demais liberdades”.
No ano passado, o tribunal constitucional alemão decidiu que mesmo um partido com inspiração nazista que defenda a dissolução do regime democrático –como programa partidário, mas exercido dentro do esquadro institucional– deve ter preservado seu direito de manifestação e existência.
A história ensina. Lá e aqui. Marchas neonazi, porém, não podem trazer suásticas ou gritos de ordem. Um olho no gato, outro no peixe.
Por certo, haverá limites. A evolução da interpretação da amplitude do comando da Primeira Emenda (artigo constitucional americano que garante a liberdade de expressão e de seus aparentados pelo mundo) riscou no chão em giz uma linha intransponível.
O discurso de ódio dirigido por grupos majoritários contra minorias étnicas, religiosas ou sexuais, por exemplo, deve ser coibido, proibido, banido. É uma questão de balanço democrático.
O STF, no HC 82.424 (habeas corpus), em 2003, entendeu que a publicação de livro com conteúdo antissemita constituía crime de racismo. Na disputa com a liberdade de expressão, os ministros entenderam que essa não prevalecia sobre a dignidade humana dos judeus. O Supremo estabeleceu um bom parâmetro.
Passada a Copa, eles (intervencionistas) voltarão mas não passarão. Se armados do gogó apenas, que sejam confinados em suas boleias de radicalismo pela tolerância e pela defesa do princípio da liberdade de expressão ampla. Apenas eles sairão queimados.