Octavia Butler mistura distopia e religião para imaginar futuro

Bairros murados com portões reforçados. A água é mais cara que a gasolina. O desemprego e a violência provocam migrações, mas as fronteiras estão fechadas. 

“A Parábola do Semeador” pode fazer o leitor se perguntar se já vivemos numa distopia. Embora a Califórnia imaginada por Octavia Butler seja assustadora, é também terreno fértil para transformações. 

Publicado pela primeira vez em 1993, quando Butler já era um dos principais nomes de ficção especulativa nos Estados Unidos e uma referência do afrofuturismo, o romance é o primeiro volume da série Semente da Terra, a última concebida pela escritora. 

O projeto foi pensado como uma trilogia, mas Butler faleceu em 2006, sem terminar o último livro. “A Parábola do Semeador” e “A Parábola dos Talentos”, contudo, são narrativas com desfechos próprios que apresentam a saga de Lauren Olamina e de seus descendentes. 

A narrativa é estruturada como o diário de Lauren, uma jovem negra de 15 anos, filha de um pastor batista. 

Ela questiona a figura de um Deus onipotente a ser obedecido e o papel de uma Igreja ao ajudar as pessoas a suportarem as dificuldades de modo passivo. Lauren não vê sentido em depositar esperanças em políticos ou na fé dos adultos de que “os bons tempos” voltarão um dia. 

A protagonista cria uma religião particular ao concluir que a mudança é o único fator inevitável em qualquer existência. Deus é mudança e cabe aos humanos conviver com isso. Sua ideia é tão simples quantos os versos registrados em seu diário. No entanto, sua crença lhe ajuda a suportar o luto e o fim de sua vida na classe média num bairro fechado.

No romance, os Estados Unidos são um país empobrecido e desigual. Roubos, invasões e assassinatos são comuns. Uma massa de miseráveis, cada vez mais violenta, circula pelas estradas. 

As empresas compram e fecham cidades, a população precisa trabalhar em troca de moradia e comida, num novo tipo de escravidão. Para criticar o modelo neoliberal, Butler imagina consequências extremas como o esgotamento ambiental e uma sociedade marcada pelo individualismo. 

A Igreja estimula a cooperação entre seus fiéis, mas dispensa a caridade com os famintos. Legitima a prosperidade conquistada pelo trabalho, mas não questiona como o capitalismo desenfreado esgotou os recursos naturais e aumentou a pobreza.
 

Butler estabelece no livro um paralelo entre a ficção especulativa e as parábolas cristãs, como formas de transmitir lições e provocar questionamentos.

No entanto, a autora usa uma narrativa sobre o fim do mundo como o conhecemos para falar de responsabilidades individuais e coletivas, da resistência ao conformismo num cenário de poucas perspectivas. 

“A Parábola do Semeador” dialoga com crises do mundo contemporâneo, mas destoa de distopias clássicas por não se tratar de um indivíduo resistindo, mas da criação de comunidades unidas por interesses em comum. 

Continuar livre. Produzir a própria comida. Numa realidade devastada, objetivos tão básicos como esses podem ser desafios. E são o começo de algo que desafiará a lógica de como as pessoas viviam até então.

Jornalista e tradutora  

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