Os diplomatas vão à guerra

Quando idealizou a fundação do Estado nacional brasileiro, o patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva preocupou-se em construir uma aliança com as nações vizinhas, também elas libertadas do jugo do colonialismo europeu. Já em maio de 1822 deu instruções ao cônsul que enviaria a Buenos Aires, Manuel Antônio Correia da Câmara, para que iniciasse negociações com a Argentina visando à criação de uma federação sul-americana. O Império do Brasil foi então modelado, e a República consolidaria essa viga diplomática, sob o signo da boa vizinhança. A contradição em que o Itamaraty se meteu na crise da Venezuela agora confronta uma tradição de dois séculos.

Repousam na acomodação da história os incidentes que, por causas específicas e efeitos inevitáveis, fugiram dessa tradição consolidada —a exemplo dos conflitos geopolíticos no instável tabuleiro da bacia do rio da Prata e a Guerra do Paraguai. Desde esse conflito multilateral, encerrado há 149 anos, temos vivido em paz com os dez vizinhos com que compartilhamos 17 mil quilômetros de fronteira. As pendências surgidas nesse interlúdio de concórdia, como a do Acre, foram resolvidas pelo instrumento adequado, a negociação da diplomacia em vez da imposição das armas. Mas agora a casa de Rio Branco, o altivo negociador pacifista, nosso Ministério das Relações Exteriores se apequena como um apêndice extranacional na ofensiva de deposição do governo venezuelano.

Para decupar posições, deixe-se claro de antemão que não se trata aqui de defender o indefensável governo de Nicolás Maduro, mas de reconhecer que a causa é maior que o personagem. Embora gravíssimos, porque o país definha a cada segundo, imerso em uma crise sem precedentes da qual o bolivarianismo parece incapaz de tirá-lo, impondo a seu povo privações de travessia do deserto, os problemas da Venezuela só podem e devem ser resolvidos por seus nacionais.

Constituem dogmas das relações internacionais, amparadas pela Carta da Organização das Nações Unidas e o direito público internacional, reconhecer e preservar a independência e o autogoverno nacionais sem dirigismo externo. O artigo 4º da nossa Constituição é explícito ao determinar que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos.

O Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo minimiza esses princípios, levando de roldão também os preceitos da Política de Defesa Nacional, fixada pelo decreto n.º 5.484, de 2005, atualizado em 2012. Ao formular a Estratégia de Defesa Nacional, o documento aprovado pelo Congresso Nacional começa por afirmar que “o Brasil é pacífico por tradição e por convicção. Vive em paz com seus vizinhos. Rege suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios constitucionais da não intervenção, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e democracia.”

O normativo veda qualquer intromissão nos assuntos internos da Venezuela. Se há interesses em jogo, os do Brasil se apartam do apetite de outros países. Já temos suficiente petróleo... Queremos amizade e mercado. E paz na América do Sul. A possibilidade de um conflito armado ("todas as opções estão sobre a mesa”, disse o presidente Donald Trump), com inaceitável participação do Brasil, é um pesadelo geopolítico que a todo custo devemos prevenir. 

Oxalá prevaleça a visão castrense do governo brasileiro que zela pela execução da política subcontinental de defesa, alinhando-se às posições antibelicistas que põem na mesa a ideia-força da paz. Nesse episódio, o Brasil cultiva uma nova jabuticaba: o paradoxo de diplomatas pregarem intervenção armada e soldados defenderem a diplomacia.

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