Otan chega aos 70 enfrentando velhos fantasmas e inimigos internos
A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) chega nesta quinta (4) aos 70 anos reforçada para enfrentar o mesmo inimigo que motivou sua criação sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial: Moscou.
Saiu a União Soviética, entrou a Rússia de Vladimir Putin, mas a razão existencial da aliança militar que começou com 12 membros e hoje tem 29 é a mesma.
A Otan mantém também a tradição de dissenso, marcada pelo rompimento de 40 anos com a França. A ascensão ao poder de Donald Trump nos EUA desestruturou a aliança, chamada por ele de obsoleta e esnobada em reuniões como a de chefes de governo ocorrida no ano passado.
Trump se apoia numa velha queixa americana: a ser pagar a conta dos europeus na manutenção de uma paz que basicamente é europeia.
É meia verdade. Embora Washington seja responsável por 70% dos US$ 907 bilhões de gastos militares da Otan em 2018, essa conta inclui todas as operações globais dos americanos.
O desembolso só em ações europeias é menor, na casa dos US$ 30 bilhões, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres.
A mesma instituição, contudo, calcula que de 2014 para 2018 o gasto militar dos membros europeus da Otan cresceu 13%, e o índice de operacionalidade de suas tropas cresceu na sua fronteira com a Rússia, os países bálticos.
“A elite russa, não só Putin, vê a Otan como um ente americano destinado a colocar mísseis e forças o quão mais próximo do Kremlin for possível. Essa é a razão da desconfiança”, diz o analista militar russo Ruslan Pukhov, do Centro de Análise de Estratégias e Tecnologias, de Moscou.
Essa percepção mútua de agressão gera uma situação incontornável. Putin guerreou com a Geórgia e atacou a Ucrânia para deixar claro que não aceita mais a Otan em suas fronteiras.
O grande aumento da aliança em 2004, incluindo ex-republicas soviéticas, jogou no lixo dez anos de parceria do Ocidente com Moscou. Foi definitiva para cimentar as desconfianças russas, que já eram grandes quando a Otan atacou a sua aliada Iugoslávia e forçou a separação de Kosovo, em 1999.
Já os ocidentais veem as ações beligerantes do russo como a razão ideal para justamente buscar esse reforço.
Fatores históricos pesam: a ocupação soviética dos três Estados Bálticos é um trauma nacional não resolvido, e a Polônia tem razões de sobra para desconfiar de Moscou.
Esses países menores são os que, paradoxalmente, mais se aproximam ou até ultrapassam a meta estabelecida de um gasto militar de 2% do PIB em 2024, que Trump gostaria de ver dobrada.
EUA, obviamente, lideram o ranking com 3,39%. Dos outros seis países que cumprem a meta, quatro são ex-comunistas, três deles os bálticos Estônia, Letônia e Lituânia.
Mastodontes econômicos ficam para trás: a Alemanha só dispende 1,23% de seu enorme PIB com defesa.
Com o descompasso, a integração das forças europeias que está na agenda do francês Emmanuel Macron parece quimérica. “Digamos que estamos na direção certa, mas não na velocidade certa”, afirma o chefe de vendas e marketing da gigante Airbus Defence and Space, Bernhard Brenner.
Conversando com a Folha durante a LAAD, feira militar no Rio, ele foi cauteloso ao falar do projeto do futuro caça de quinta geração europeu, um dos símbolos dessa interação.
No ano passado, Alemanha e França se uniram para iniciar o projeto, uma quebra de paradigma: franceses sempre tiveram indústria militar independente, orientada para exportação e com poucas firulas diplomáticas com clientes suspeitos.
“Hoje temos o Eurofighter (consórcio europeu) e o Rafale (Dassault francesa), vamos trabalhar por um produto conjunto”, afirmou.
Ele vê com mais otimismo, especialmente porque sua empresa será a beneficiada, a inciativa de alguns membros da Otan (Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Holanda e República Tcheca) de integrar uma frota multinacional de aviões-tanque.
“É uma forma de otimizar gastos por hora de voo”, afirma. A Airbus forneceria o avião, o A330-MRTT.
Esse tipo de programa desvia, claro, da função inicial da Otan –a defesa mútua de seus membros. Ela só ocorreu uma vez, quando os EUA foram atacados no 11 de setembro, e a Otan colaborou com tropas no Afeganistão.
Mas até aqui a aliança não se mostrou capaz de agir sem os EUA. Seu primeiro combate de fato ocorreu só em 1994, durante a guerra da Bósnia, quando derrubou aviões de separatistas sérvios em área proibida.
Além de Putin e Trump, há outros pontos de atrito na aliança, notadamente entre regimes que variam entre a autocracia e a chamada democracia iliberal.
No primeiro grupo, a Turquia irritou a Otan ao adquirir sofisticados sistemas russos de defesa aérea, os S-400, tanto que Washington suspendeu o fornecimento de caças F-35 para o país nesta semana.
No segundo, governos como o de Viktor Orbán na Hungria desafiam o conceito democrático da aliança ao tomar medidas restritivas de independência de Poderes.
Com todos esses fatores, um divã talvez fosse o presente adequado para a celebração que ocorrerá em Washington nesta quinta.
Cronologia
1949 - Os 12 países fundadores da Otan assinam o Tratado do Atlântico Norte em Washington
1952 - Turquia e Grécia aderem
1955 - A Alemanha Ocidental se une à Otan, após anos de desnazificação
1956 - Primeira crise interna, com EUA se opondo à intervenção franco-britânica na crise de Suez
1961 - A Guerra Fria eleva patamar com a construção do muro de Berlim
1966 - França deixa a estrutura de comando da Otan, acusando excesso de poder americano
1982 - Espanha entra na Otan
1989 - Cai o muro de Berlim, começo do fim do comunismo soviético
1990 - Reunificação alemã, Alemanha Oriental deixa o Pacto de Varsóvia
1991 - Fim da União Soviética e do Pacto de Varsóvia
1994 - Primeira ação militar da Otan: derrubada de quatro aviões sérvios na Bósnia
1994 - Guerra na Chechênia expõe fraqueza militar russa; Moscou adere a programa de parceria
1996 - Russos dão apoio a tropas da Otan na ex-Iugoslávia
1999 - Otan ataca a Iugoslávia, início do afastamento russo; Polônia, Hungria e República Tcheca aderem
2001 - Em resposta ao 11 de Setembro, é invocado pela primeira vez o artigo 5 da Otan, de defesa mútua em caso de agressão
2003 - Mais um racha: países liderados pela Alemanha vetam Otan na Guerra do Iraque
2004 - Expansão ao leste, com sete países ex-comunistas, inclusive os Estados Bálticos, elevando o número de membros para 26
2008 - Para vetar adesão à Otan, Rússia trava guerra com a Geórgia
2009 - França volta ao comando militar da Otan; Albânia e Croácia aderem
2011 - Com mandato da ONU, Otan controla espaço aéreo da Líbia
2014 - Rússia anexa a Crimeia e intervém no leste da Ucrânia para evitar adesão de Kiev ao Ocidente
2017 - Montenegro adere à Otan
2018 - Racha entre EUA de Trump e Otan cresce com cobranças americanas por mais gasto