Pacote de Moro expõe efeito político de falta de diálogo e articulação
A análise dos documentos que subsidiaram a elaboração do pacote de medidas legislativas proposto pelo ministro Sergio Moro, que foram obtidos pela Folha, é reveladora da ausência de uma preocupação com ritos de boa governança, transparência, participação e análise de impactos. Esses procedimentos são reconhecidos enquanto tal pela OCDE, organização cujo ingresso do Brasil está nas prioridades do atual governo.
Os documentos desnudam os efeitos políticos da falta de diálogo e articulação, o que pode ser constatado ao se cotejar a minuta inicial do ministro, em 7 de janeiro, com o projeto enviado para o Congresso.
Nela, o ministro Sergio Moro propôs alterar a lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para permitir que ocorrências menos graves pudessem ser registradas, em termos circunstanciados, e enviadas diretamente ao Judiciário pelas Polícias Militar, Rodoviária, Guardas Municipais e por agências especializadas da União e das Unidades da Federação (Ibama, INSS, CVM e Receita Federal). Atualmente, todos os registros precisam ser feitos pelas polícias judiciárias (Civis e Federal).
Seria uma das maiores mudanças na segurança pública brasileira e atenderia uma demanda antiga das Polícias Militares por maior autonomia. O diálogo exclusivamente vertical entre ministro e seus subordinados, no entanto, impediu o debate e permitiu o veto ao parágrafo pela Polícia Federal.
Mas se os delegados da PF saíram vitoriosos nesta queda de braços de bastidores, eles também foram prejudicados. O pacote não oferece nenhuma solução processual alternativa que estabeleça critérios republicanos de seletividade que permitam às polícias priorizarem recursos ou casos. Retrato disso é o fato de, hoje, um furto de cartão de crédito exigir quase o mesmo tratamento processual/investigatório de assassinatos perpetrados por milícias.
O segundo efeito político é a reprodução de estigmas inaceitáveis ao ordenamento democrático.
Ao propor a ampliação do conceito de exclusão de ilicitude, como forma de atender à promessa da campanha de Jair Bolsonaro, o projeto alega que isso é necessário aos agentes públicos. O texto defende que esses policiais atuam em regiões de “pouca urbanização” e “comumente não têm condições de diferenciar cidadão de bem de meliantes”.
Ou seja, o texto naturaliza que as mortes de pobres são efeitos colaterais da ausência das políticas sociais e das opções político-institucionais que incentivam o enfrentamento, independente dos policiais serem colocados para matar e morrer na ponta da linha.
Em termos de governança, o Susp (Sistema Único de Segurança Pública), aprovado e regulamentado em 2018, sequer foi mencionado. O pacote não fala em “integração”, “critérios de controle da atividade policial” ou “cooperação federativa”. Não há menção ao uso compartilhado de dados gerenciais pelos Poderes Executivo e Judiciário. Pouco se fala sobre o sistema prisional ou das corregedorias.
O uso de evidências se restringe a material jornalístico em 7 das 14 referências externas encontradas no projeto. Nos demais casos, há citação de doutrinas jurídicas. Não há quase indicadores e/ou estimativas de custos econômicos, fontes de financiamento e prazos de implementação envolvidos.
Um exemplo é a proposta de ampliação da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, criada em 2013. Após cinco anos, em maio de 2018, a Rede contava com 13.197 perfis cadastrados para confronto com perfis gerados por 23 laboratórios forenses e pela Interpol, isso para um quadro em torno de 60 mil homicídios e 82 mil desaparecimentos anuais.
Por tudo isso, o pacote é uma respeitável opinião jurídica. Mas tão somente isso.
Ele é política e ideologicamente informado e passa a ocupar o espaço político e não técnico no Congresso. O pacote passa a disputar a narrativa com outros projetos em tramitação. Diferentemente das propostas de reforma da Previdência dos civis e militares, fartamente documentadas, não há no pacote para a segurança pública evidências e indicadores que demonstrem a primazia e a eficiência das medidas propostas, por mais bem-intencionadas que sejam.
O Brasil só ganharia se segurança pública fosse tratada com as modernas ferramentas da administração pública. Porém, na prática, o Congresso terá que apreciar as propostas sem informações suficientes sobre o efetivo impacto que estas terão no cenário de crime e violência do país.
Renato Sérgio de Lima é presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da FGV-Eaesp