Para budista, Otavio Frias Filho tinha como princípio a preocupação com os outros

Em fala durante a cerimônia inter-religiosa em homenagem ao jornalista Otavio Frias Filho, morto na última terça (21) aos 61 anos, Priscila Veltri, do centro budista Chagdud Gonpa Odsal Ling, destacou que Otavio exerceu a vida inteira um dos princípios do budismo ao “se preocupar mais com o sucesso dos outros do que com seu próprio sucesso”. 

Ela disse ainda aos presentes que a melhor forma de homenagear “uma pessoa extraordinária” como Otavio seria tentar fazer coisas extraordinárias, como ligar para alguém que se ama.

O ato, com cerca de 500 pessoas na Matriz Paroquial Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no Sumaré, zona oeste de São Paulo, foi celebrado por dom Fernando Antônio Figueiredo, bispo emérito da diocese de Santo Amaro, Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelita Paulista, e Priscila Veltri, do centro budista Chagdud Gonpa Odsal Ling, em São Paulo.

Jornalista, dramaturgo e ensaísta, Otavio (1957-2018) foi vítima de um câncer. Durante 34 anos, ocupou o cargo de diretor de Redação da Folha, período em que o jornal se tornou o maior e mais influente do Brasil. Foi mentor do Projeto Folha, que modernizou o jornalismo brasileiro na década de 1980. Sob a gestão de Otavio, o veículo consolidou-se como uma referência no jornalismo apartidário, pluralista, crítico e independente.

A seguir, a íntegra da fala da representante do centro budista.

 

Boa tarde a todos. Meu nome é Priscila. Me pediram que eu participasse dessa linda homenagem ao Otavio e que eu falasse um pouquinho do ponto de vista budista.

Eu tive a oportunidade de ouvir algumas vezes ao Dalai Lama dando ensinamentos e muitas vezes, quando o Dalai Lama vai se apresentar, ele sempre diz:  eu sou um simples monge budista. E pensando no modo como o Dalai Lama se apresenta, eu fiquei pensando, puxa, mas como eu vou me apresentar, se o Dalai Lama fala que ele é um simples monge budista? Então, eu resolvi pular essa parte. Não vou me apresentar, porque, sinceramente, a melhor coisa que eu tenho a falar a meu respeito é que sou muito afortunada de ter mestres, professores muito realizados, muito especiais, com os quais eu venho praticando, aprendendo, há mais de vinte anos.

E uma das coisas muito interessantes dentro do budismo, quando o próprio Buda Shakyamuni deu os ensinamentos, ele sempre disse que os ensinamentos que ele compartilhou com as pessoas são ensinamentos que nós devemos trazer para a nossa vida, para o nosso dia a dia. É algo para ser colocado em prática, não é algo para ficar só na teoria.

Então, hoje, eu vou compartilhar com vocês dois ensinamentos, dois pilares do budismo que, sem dúvida nenhuma, fazem parte do meu dia-a-dia, da minha vida, e acho que tem muito a ver com esse momento.

Se em algum momento vocês se interessarem pelo budismo e quiserem ouvir um pouco mais a respeito, inevitavelmente, vocês vão ouvir falar que um dos pilares do budismo é que o grande sucesso que a gente pode alcançar na nossa vida é se preocupar com a felicidade dos outros e não ficar se preocupando com o nosso próprio sucesso. O sucesso dos outros é mais importante do que o nosso próprio sucesso. E outro ensinamento muito característico do budismo é que nós fazemos a contemplação da impermanência de todas as coisas. E é algo que a gente tenta trazer para o nosso dia a dia. E a impermanência de todas as coisas é uma coisa muito presente neste momento em que estamos aqui reunidos.

Por mais difícil que seja nós pensarmos a respeito, e digerirmos, e termos que conviver com a impermanência, ela é um fato. E é um fato presente em nossa vida em todos os momentos, em todos os dias.

Se a gente parar para pensar que todos nós aqui, que estamos reunidos nesta igreja, o jeito como a gente entrou aqui, certamente vai ser diferente do jeito como nós vamos sair daqui, porque nossos pensamentos estão mudando o tempo todo. Nossos sentimentos estão mudando o tempo todo. A gente entrou de um jeito e a gente vai sair de outro. Melhor, pior, mas a gente vai sair diferente. Mas não é só internamente que as coisas estão mudando o tempo todo, com nossos pensamentos, com nossas emoções. Nosso corpo está mudando o tempo todo. Todas células, cada célula do nosso corpo está nascendo, está morrendo, está se multiplicando, está se transformando.

E essas mudanças elas acontecem não só internamente. Elas acontecem em tudo ao nosso redor. Quer a gente queira ou não, as mudanças acontecem. Todos nós estamos pisando agora num chão que nos parece tão estável, tão firme. Só que, se a gente parar para pensar, a gente está pisando no planeta Terra. E o planeta Terra não só está em movimento, girando no seu próprio eixo, mas está girando ao redor do sol. Então, não tem nada que a gente possa olhar e que esteja parado e que não esteja se transformando. E, quando a gente traz isso para o nosso dia a dia, a conclusão que a gente chega é que tudo é impermanente e tudo passa. E, claro, que, de uma certa maneira, a gente pode entender isso como um consolo de que os momentos tristes passam também. E não é fácil falar isso num momento de tanta dor, de tanta saudade de alguém que partiu, pensar que isso vai passar.

Que seja, não vamos usar a palavra então que essa saudade, essa dor vai passar. Mas, certamente, ela vai mudar, ela vai se transformar. Acho que é para isso que a gente veio aqui, para transformar essa dor em algo maior. Então quando a gente pensa que tudo passa, tem um lado disso, que é o lado de a gente pensar que os momentos difíceis vão passar. Mas tem um outro lado desse ensinamento, dessa lição, que é muito importante, que os momentos bons também vão passar. E é isso que a gente não pode esquecer porque, quando a gente se lembra disso, a gente não desperdiça a nossa vida, a gente não desperdiça as nossas oportunidades. Nós precisamos nos lembrar o tempo todo de que a vida está passando, que nada permanece, que tudo muda. Então cada momento da nossa vida precisa ser aproveitado e não pode ser desperdiçado.

A morte nos ensina uma lição muito dura de que, muitas vezes, a gente desperdiça nossa vida transformando pequenos problemas em grandes problemas. A gente faz muitas vezes tempestade num copo d´água e coisas que a gente achava que eram muito difíceis, intransponíveis e, quando a morte vem, a gente olha para as mesmas coisas e tudo parece muito irrelevante.

E talvez vocês possam estar pensando: puxa, mas de que me adianta estar ouvindo esse ensinamento, ou esse ponto de vista budista de que a gente precisa aproveitar, não desperdiçar os momentos, neste momento, em que uma pessoa tão querida como o Otavio não está mais aqui? E a gente não tem como dizer para ele o quanto a gente o ama, o quanto ele foi importante na nossa vida, o quanto a gente aprendeu com ele. Fica uma sensação meio estranha. Está bom, eu estou ouvindo isso e não tem nada que eu possa fazer. Mas esse é o ponto. É claro que a gente pode fazer alguma coisa a respeito disso.

Nós estamos todos aqui reunidos para fazer uma homenagem a uma pessoa extraordinária e eu, humildemente, acredito que a melhor maneira de a gente fazer uma homenagem a uma pessoa extraordinária é fazendo algo extraordinário. Então, a minha proposta, dentro da visão budista, é que cada um de nós assuma um compromisso em homenagear o Otavio, e vivermos uma vida extraordinária. Se pensar em uma vida extraordinária é muita coisa, está bom, vamos pensar então em 24 horas de uma vida extraordinária, onde nenhum minuto, nenhum segundo, você vai viver em vão. Vamos aproveitar o dia de hoje e aproveitar todas as oportunidades que a vida nos dá o tempo todo. Não vamos deixar passar nenhuma. Vamos pegar o telefone e ligar para uma pessoa que a gente ama e vamos falar para essa pessoa o quanto ela é importante para nós. Vamos pensar em alguém com quem a gente está se desentendendo e vamos ter uma conversa com o coração aberto com essa pessoa. Vamos viver a vida de hoje de uma maneira extraordinária e não só com as pessoas queridas e próximas, mas com qualquer pessoa que cruzar nosso caminho. Vamos ter o maior respeito por essa pessoa, pelo recepcionista, pelo motorista do Uber ou do táxi. Por qualquer pessoa que cruze nosso caminho, um garçom, se você for a um restaurante. Tenha todo o respeito que você puder ter por essa pessoa. Demonstre a essa pessoa um carinho. Essa é uma homenagem que a gente pode fazer ao Otavio, viver o dia de hoje com cada pessoa que cruzar o nosso caminho, e desejar que o sucesso dessa pessoa seja mais importante do que o seu próprio sucesso. Porque essa é uma grande homenagem que a gente pode fazer por alguém que viveu uma vida inteira se preocupando com o sucesso dos outros, mas do que com o próprio sucesso.

E eu vou estar junto com vocês nessas 24 horas, tentar fazer o melhor que eu posso e certamente vou dedicar isso ao Otavio e agradecer a ele por me lembrar da importância de colocar isso em prática.

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