Policial matador na ditadura vira pastor e diz que hoje não combateria a esquerda
"Fiz algumas coisas que não foram boas", diz o pastor Cláudio Guerra à Folha, pelo telefone. A voz é de um senhor de 78 anos, e o tom, monocórdio.
Assim o ex-delegado do Dops (Departamento de Ordem Político Social) do Espírito Santo se refere ao período em que matou ou ajudou a dar sumiço em corpos de militantes de esquerda, tudo a mando da ditadura militar brasileira, para a qual serviu como fiel agente nos anos 1970 e 1980.
A imagem desse senhor reagindo a nomes que lhe são jogados é uma das mais fortes de "Pastor Cláudio", documentário de Beth Formaggini gravado em 2015 e em cartaz desde o dia 14. Muitos desses nomes eram do PCB (Partido Comunista Brasileiro). "Esse aí eu matei" ou "esse eu incinerei", diz, no filme.
Cláudio não é muito fã do resultado, baseado numa conversa sua com um ativista de direitos humanos, um depoimento que faz questão de dar com uma Bíblia nas mãos. Também ficou "muito triste" com reportagens sobre o filme, que, para ele, deixaram de lado o homem de Deus que hoje diz ser.
"Vi quando me chamam de assassino. Destilam ódio e, enquanto for assim, o objetivo de termos uma nova sociedade em que se perdoa os erros que foram cometidos... Teve vítimas fatais dos dois lados."
O pastor da Assembleia de Deus que agora se diz arrependido pelos feitos do passado ainda chama de "revolução" o golpe de 1964 e é entusiasta do discurso nacionalista de Jair Bolsonaro (PSL), o capitão reformado que virou presidente, e tem uma bandeira do Brasil como foto em seu perfil no WhatsApp.
"Hoje eu não combateria a esquerda, embora não concorde com o comunismo. Hoje eu quero paz", afirma.
Paz não era sua prioridade nos tempos que, em suas próprias palavras, "eram minha época de bobo". Dias em que matou e não foi pouco. O agora pastor e ex-agente da repressão vai elencando: de execução mesmo, uma ou duas pessoas no Rio, três em São Paulo, teve uma no Recife e o Nestor Vera, até hoje dado como desaparecido político, em Belo Horizonte.
E tem os cadáveres que incinerou a pedido de oficiais da ditadura, ao menos 12 deles em fornos de uma usina de açúcar em Campos de Goytacazes (RJ). Tudo isso ele relatou em 2014, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes cometidos no regime militar, e, dois anos antes, em "Memórias de uma Guerra Suja", livro com suas recordações sobre a tal "época de bobo".
Da ditadura ganhava carros (quando um Chevette dele queimou acidentalmente na usina, ganhou um zero km de presente) e ordens orais para assassinar fulano ou sicrano. Estas em geral partiam do coronel Perdigão, diz o agora pastor.
Fala do coronel Freddie Perdigão, apontado como o responsável da Casa da Morte em Petrópolis, centro clandestino onde a repressão matou e torturou, e autor do atentado do Riocentro, quando um sargento e um capitão explodiram sem querer dentro de seu carro Puma, antes da hora, uma bomba planejada para o Dia do Trabalhador no pavilhão carioca.
Isso em 1981, como parte de um plano maior para gerar caos social e boicotar a abertura do àquela altura trôpego regime militar.
Cláudio diz que nunca participou de tortura. Também conta que pegava os corpos a serem "desaparecidos" com a equipe de Perdigão, e ele e os colegas encarregados de queimá-los não resistiam: abriam os sacos plásticos pretos para dar "uma espiadinha, por curiosidade".
Em um deles viu uma mulher com "sinais físicos" de estupro. Em outro, um cadáver sem braço. Acha que era o de José Roman, um corretor de imóveis do PCB, o Partidão.
O ex-delegado lembra do humor daqueles dias, como ao descrever um coronel que passou a lutar contra a ditadura como melancia, "verde por fora e vermelho por dentro". No filme de Beth, sorri ao se desculpar por não reconhecer quem são algumas das pessoas em fotos mostradas a ele, vítimas do regime. Está com a memória cansada por causa da idade, diz.
Vida nova na igreja
Já a conversão ao Evangelho, conta à Folha, ele não esquece.
Foi em 2006. Cláudio Guerra estava preso, e pela segunda vez —duas condenações que nada tinham a ver com suas práticas no período militar.
Na primeira, o ex-delegado foi acusado de "colocar bomba no carro de uma pessoa". Não diz o nome, mas era um bicheiro, Jonas Bulamarques, que saiu mutilado do atentado de 1982 e acabou assassinado meses depois.
Na segunda, pela morte de duas mulheres, a esposa e a cunhada, ambas encontradas em 1980 num lixão com 19 e 11 tiros, respectivamente. Guerra nega a autoria dos dois crimes. Foi preso mesmo assim.
A primeira fase como penitenciário foi "uma prisão light", pois o ambiente era "amigável" a ex-delegados como ele, afirma. Já a segunda foi o oposto. Já era um sexagenário quando voltou à cadeia, com presos comuns, e passou "um inferno", diz. "Aqueles gritos de 'delegado safado', uma tortura psicológica medonha."
"Não tinha amigo mais, poder nenhum mais. Num belo dia, uma senhora, a irmã Santinha, começou a falar de Jesus pra mim. Eu falava que não tinha jeito, fiz muita coisa errada. Na minha cabeça não existia perdão."
Ela o convenceu que estava errado citando uma passagem bíblica que diziam que, caso se arrependesse, "ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve".
O pastor Cláudio não ora por suas vítimas. "A palavra me ensina que tenho que orar pela família. Pela pessoa que morre nada você tem a fazer, ela vai dormir até o julgamento final."
Mora numa "casinha humilde" em Vila Velha, município vizinho à Vitória, nada comparável ao casarão que tinha quando estava a serviço da ditadura e "dava festas para mais de 100 pessoas, coisa de ostentação mesmo".
O ex-delegado conta que, cumprindo regime aberto, dá aulas para presidiários e acha que a vida foi boa com ele. "Tenho 12 netos, 9 filhos, 3 bisnetos, olha como Deus tem misericórdia e gosta de mim."