Potencial vantagem trans no esporte contrasta com real desvantagem fora dele
Na semana passada, o técnico Bernardinho foi flagrado pelas câmeras de uma partida da Superliga de vôlei lamentando ponto marcado pela jogadora transsexual Tiffany contra seu time. “Um homem é f*”, lamentou o treinador, famoso pelas performances estridentes à beira da quadra.
Acusado de transfobia, Bernardinho veio a público pedir desculpas. Mesmo assim, a grita foi tamanha que a própria atleta trans gravou um vídeo-legenda sobre a declaração do técnico: “Nós, mulheres trans, começamos a jogar vôlei no masculino. E aprendemos movimentos do masculino, que as mulheres não conseguem…ou não aprendem muito este movimento, talvez”.
Segundo Tiffany, o comentário de Bernardinho era sobre o movimento típico do vôlei masculino que ela havia feito na partida. O episódio ilustra um debate delicado que se instaurou no recente cruzamento entre esporte e identidade de gênero.
Desde 2016, o Comitê Olímpico Internacional (COI) autoriza a participação de competidoras trans em disputas nas categorias femininas desde que apresentem nível de testosterona inferior a 10 nanogramas por litro de sangue nos 12 meses que antecedem o início das competições.Sabe-se que homens têm, em média, mais massa muscular que mulheres, o que lhes confere vantagens em termos de força e velocidade. Por isso há distinção, dentro de cada modalidade, entre disputas masculinas e femininas.
Mulheres trans, no entanto, ao se submeterem a terapias hormonais, sofrem uma transformação física na qual o aumento da gordura corporal e a perda de musculatura alteram seu desempenho físico, tornando sua potência semelhante à de atletas nascidas mulheres (chamadas de mulheres cis).
Se, além da mudança de identidade, agora também o corpo da atleta é feminino, não faz sentido que a disputa de mulheres trans se dê contra homens. Se a transição, por outro lado, não for capaz de apagar do corpo características masculinas adquiridas antes do início da terapia hormonal, pode fazer sentido a grita de atletas cis que se sentem em desvantagem em relação às adversárias trans.
É curioso que a mesma grita não ocorra em relação a atletas homens trans, ou seja, pessoas nascidas mulheres que fizeram uma transição, baseada também em terapias hormonais, para uma identidade masculina e que, como esportistas, são exaltadas pela performance física.
O fato de não existir um consenso científico sobre a paridade de desempenho entre atletas trans e cis alimenta a polêmica, no meio da qual está uma questão fundamental: não dá para excluir pessoas trans, talentosas e qualificadas para o esporte, de competições profissionais. Fora das quadras, as desvantagens das mulheres trans estão em toda parte.
Um estudo que comparou a taxa de retorno de mulheres trans e cis em entrevistas de emprego para vagas de alta qualificação no estado do Texas, nos EUA, apontou para uma forte desvantagem das mulheres trans, que receberam 50% menos retorno dos empregadores que mulheres cisgêneras. Outro estudo norte-americano apontou que pessoas trans tinham seis vezes menos chance de receber uma oferta de emprego que seus pares cisgêneros.
No campo da aceitação, as pessoas trans também perdem mesmo quando comparadas a seus companheiros de sigla LGBT: os gays, as lésbicas e os bissexuais. Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre os desafios para a inclusão de pessoas LGBT deixa claro que, na média da população de seus países membros, indivíduos trans causam mais desconforto que gays, lésbicas e bissexuais e estão mais sujeitos problemas de saúde mental.
Em relação a pessoas cis, pessoas trans têm, em média, o dobro de chance de ser diagnosticado com depressão, de sofrer dificuldades de concentração e memória, e de sofrer doenças coronárias. No Brasil, pesquisa realizada pela organização de mídia Gênero e Número em três capitais apontou que 76% das travestis, mulheres trans e homens trans que responderam à pesquisa perceberam aumento da violência contra eles desde as eleições de 2018, quando emergiram com força discursos de cunho homofóbico e transfóbico.
Em meio a tantos campos minados, o esporte tem se apresentado como um terreno relativamente seguro de atuação para pessoas trans desde a regulamentação do COI. Tudo indica, no entanto, que este será um campo em disputa até que a ciência reconheça como legítimo o regramento atual para a inclusão dessas pessoas no esporte. Caso contrário, como competição esportiva não é instância de justiça social, vale já imaginar quais as possíveis alternativas. Criar uma categoria trans? Não deixaria de ser uma nova segregação.