Preconceito reduz lazer de mulheres e negros, diz embaixadora de Gana

Numa visita oficial a Salvador, a embaixadora de Gana, Abena Busia, 65, se espantou: no vídeo feito para divulgar a cultura e a natureza baianas, os negros só apareciam como serviçais ou no papel da própria atração turística.

“Essa cegueira racial é um fracasso em reconhecer que africanos e seus descendentes podem ser também turistas”, diz a especialista em questões étnicas e de gênero, que formou-se e viveu nos Estados Unidos durante três décadas e está em Brasília há seis meses.

São barreiras simbólicas, invisíveis, que impedem que grupos inteiros desfrutem momentos de lazer, diz a professora visitante no Programa de Estudos Africanos e Afro-americanos na Universidade Yale.

O problema é pouco visível porque, diz ela, o lazer é visto como um luxo. “Na verdade, é uma questão de saúde mental. Lazer é uma mulher trabalhadora com cinco filhos poder dizer: eu toco violão e preciso das noites de domingo para tocá-lo.”

Abena diz que as barreiras sobre as mulheres são ainda maiores que as do preconceito racial. A embaixadora, que nesta sexta-feira (31) fala no 15º Congresso Mundial de Lazer, no Sesc Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, usa sua própria experiência como exemplo.

Há 30 anos, ainda estudante, teve medo de ir sozinha ao Lincoln Center, em Nova York. “Era um lugar muito branco e muito erudito, ainda que quem estivesse se apresentando fosse um pianista negro.”

 

Como o preconceito impede minorias de usufruírem o lazer? 

De várias formas. Alguns meses atrás, um grupo de embaixadores africanos fomos à Bahia conhecer as oportunidades do estado. Como parte do evento, houve uma apresentação oficial sobre as lindas praias e a cultura. Enquanto via o filme, me ocorreu que havia algo errado, mas não conseguia entender o que era. Então percebi que a audiência para a qual o vídeo se dirigia não incluía negros.

Os turistas que o filme mostrava eram todos brancos? 

Sim, era um lindo filme dizendo “Venha para a Bahia”, mas se dirigia só para brancos. Isso no estado com a maior parcela de descendentes de africanos do país. Negros eram apenas as mulheres em lindos vestidos, os jovens jogando capoeira, os garçons. Eles eram as pessoas que nós viemos ver. Não estavam incluídos entre os convidados a visitar a Bahia e aproveitar o estado.

Outra coisa que me intrigou é que, embora se falasse de séculos de história, não havia menção à complexidade dessa história. Quando você falha em reconhecer a complexidade histórica, fracassa também em entender que um enorme grupo de pessoas poderia vir à Bahia justamente por causa dessa história. Ainda mais notável, nosso grupo era formado justamente por embaixadores de países africanos, com rica experiência em turismo histórico e cultural, que poderia ser compartilhada.

Essa insistência numa espécie de cegueira racial é um fracasso em reconhecer que africanos e seus descendentes também podem ser turistas, e não apenas personagens. Não quero ser ingrata com meus anfitriões, tivemos uma ótima recepção. Mas é um exemplo muito claro de uma falta de imaginação que deixa de fora um enorme grupo de pessoas, do qual eu mesma faço parte. Há muitas outras formas sutis de discriminação, não só de raça, mas de gênero também.

Mulheres têm menos oportunidades de lazer? 

Vou lhe contar três momentos pessoais, separados por três décadas de vida. Momentos em que eu queria assistir a apresentações musicais. Na primeira vez, eu tive medo de ir sozinha. Na segunda vez, eu fui sozinha, mas estava o tempo todo incomodada pelo fato de estar sozinha. E, na terceira, eu apenas fui correndo e nem me importei.

O que mudou de um evento ao outro? A sra., a cultura ou o ambiente? 

Tudo isso. Eu mudei conforme envelheci, mas os espaços também tinham muita importância. Na primeira vez, eu era uma jovem universitária, indo ao Lincoln Center, em Nova York, um lugar muito branco e muito erudito, ainda que quem estivesse se apresentando fosse um pianista negro. Algo muito diferente que estar na minha cidade natal e ir assistir a Aretha Franklin, como na terceira vez. Às vezes a pressão é interna, às vezes externa, e às vezes são as duas ao mesmo tempo.

Em comparação com os EUA, onde a sra. morou muitos anos, o que no Brasil pode explicar essa cegueira racial? 

É uma pergunta um pouco difícil, porque estou há pouco tempo no país e não falo português, o que dificulta a compreensão de aspectos sociais sutis. E, como embaixadora, preciso ser cautelosa.

De qualquer forma posso dizer que, até onde posso ver, o Brasil tem a retórica correta sobre raça —todos falam abertamente sobre a herança africana. Mas, na prática, em circunstâncias sociais, ocorre o que eu vi em Salvador.

Nos EUA houve uma grande briga para colocar negros nos papéis de poder, nos papéis românticos principais. Há 30 anos quando cheguei aos EUA, se houvesse uma mulher negra nos filmes ela seria prostituta ou faxineira. Hoje há séries em que todos os papéis principais são negros. Percorremos um longo caminho. Infelizmente, nos últimos meses houve forte piora. Pessoas em posições importantes se sentem agora liberadas para dizer coisas e agir de formas impensáveis há alguns anos.

O que fez o ódio aflorar de novo? 

A concepção de certos grupos de que eles têm mais direito a ficar com o bolo. Se o bolo é finito e é preciso reparti-lo, a fatia deles ficará menor. É uma mentalidade muito comum entre os mais ricos. Há muito mais generosidade entre os pobres.

Qual o caminho para repartir melhor o bolo? 

A única forma é educação. É preciso educar teoricamente, mas também por ação afirmativa. Há uma ideia falsa de que a ação afirmativa dá lugar a pessoas menos qualificadas. Aplicada corretamente, o que ela faz é jogar uma rede maior na seleção de pessoas.

Se um concurso exige cinco anos de experiência e mestrado, e ao final chegam um indígena com esses requisitos e um homem branco com doutorado, é um engano pensar que o indígena é menos qualificado. Ele tem direito à vaga. O branco com doutorado tem dezenas de outras oportunidades de emprego. Essa é a ação afirmativa correta. Não estamos empregando o indígena porque gostamos dele ou temos pena, mas porque precisamos reforçar sua oportunidade. É aqui que educação e controle na narrativa fazem muita diferença.

Num país com desigualdade econômica, de educação, de saúde, qual a importância da desigualdade no lazer? 

Lazer não é um luxo. É uma questão de saúde mental, saúde psicológica. Lazer é uma mulher trabalhadora com cinco filhos poder dizer: eu toco violão e preciso das noites de domingo para tocá-lo. Não custa dinheiro. Precisa apenas que os outros reconheçam essa necessidade. É uma questão de saúde mental, de que as pessoas reconheçam meu direito a fazer algo que me faz bem.

Área: 238.533 km² (equivale a Rondônia)
População: 28,9 milhões (pouco mais que o estado de MG)
PIB: US$ 47,3 bi (Brasil é US$ 2 tri)
PIB per capita*: US$ 4.600 (Brasil é US$ 15,5 mil)
IDH: 0,579 (139º lugar, Brasil é o 79º)

*Em poder de paridade de compra

Fontes: CIA World Factbook, Banco Mundial e ONU

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