Pressão sobre Evo, o último (?) caudilho
Evo Morales, o presidente da Bolívia, discursava nesta segunda-feira (6) na tradicional festa para comemorar a independência, mas teve que interromper a fala várias vezes pelos gritos de “Bolivia dijo no” (a Bolívia disse não).
É uma alusão ao resultado de referendo para reformar a Constituição de forma a permitir uma nova reeleição do presidente, no poder desde 2006. O “não” ganhou (51,3% contra 48,6%).
Evo não se conformou e recorreu ao Tribunal Constitucional, que decidiu a favor dele, habilitando sua candidatura para as eleições de 2019.
Foi a vez da oposição não se conformar, tanto que, um mês depois dessa decisão, defendeu o voto branco ou nulo nas eleições para o Poder Judicial. Quase dois terços dos votantes (64,9%) seguiram a orientação da oposição e anularam o voto ou votaram em branco. Os candidatos do governo ficaram com apenas 35%.
A partir daí, o grito de “Bolívia dijo no” passou a ser um mantra permanente da oposição, formada não apenas pelos partidos políticos mas também pelos chamados “coletivos", organizações da sociedade civil que ganharam força nos últimos anos.
Que o grito tenha chegado aos ouvidos do presidente indica que está sob pressão esse que pode ser chamado de o último caudilho da safra de esquerda que ascendeu no início do século na América Latina.
Morreram Hugo Chávez e Néstor Kirchner, Cristina Kirchner perdeu a eleição e está sitiada por investigações judiciais, Rafael Correa foi marginalizado pelo seu sucessor, Lenín Moreno, Lula está preso e inabilitado judicialmente. Não incluo Daniel Ortega e Nicolás Maduro na lista porque não são de esquerda; são apenas ditadores do velho estilo latino-americano.
A pressão é tamanha que Evo limitou sua intervenção na festa pátria a 33 minutos, “a mais curta dos últimos anos", segundo o jornal El Deber.
Esperava-se que o presidente falasse por ao menos duas horas, o que até seria pouco: em gestões anteriores, chegou a falar entre três e cinco horas.
Essa nova situação não quer dizer, necessariamente, que Evo esteja em vias de retirar-se, até porque não faz o gênero dos caudilhos.
Diz à Folha Gustavo Fernández, ex-chanceler e um dos mais lúcidos analistas bolivianos: “O dado central é que Evo perdeu a iniciativa e se encontra na defensiva. Mas não está derrotado e, como se está comprovando na Venezuela e na Nicarágua, recorrerá a todos os meios para manter-se no poder".
O presidente boliviano tem cacife: pesquisa da Captura Consulting, encomendada pelo jornal El Deber e divulgada na semana passada, mostra que Evo Morales, com 41%, é o presidente mais admirado da história moderna do país.
Pode ser que o fato de estar no poder há 12 anos torne mais fácil lembrar de seu nome do que o de qualquer antecessor. Mas o analista Diego Ayo tem outra hipótese: “Evo significou dar cidadania política aos aimaras [uma das duas grandes etnias indígenas], o que representa uma mudança de paradigma".
Até a ascensão de Evo, ele próprio de origem aimara, a política boliviana era coisa só para os brancos.
Esse é um ponto que os críticos dos populismos deveriam levar em conta: nem sempre os populistas, uma vez no governo, são deletérios. Às vezes simplesmente respondem a anseios populares. Se, ao fazê-lo, tomam medidas que não são sustentáveis é outra história.
Como completa o analista Diego Ayo, que não é um simpatizante de Evo: uma coisa é pôr os indígenas no jogo, “outra é fazer uma análise de sua gestão, que, sim, se pode criticar".
Suspeito que essa capacidade de mudar o paradigma seja a explicação para a resiliência dos populistas, de que o grande exemplo é Juan Domingo Perón, três vezes presidente argentino. Ao dar voz política a classe operária, então relevante, Perón tornou-se imortal aos olhos de uma ponderável fatia dos argentinos.
Tanto que sobreviveu eleitoralmente a um banimento de quase 20 anos e ao exílio.
Como caudilhos não deixam herdeiros, seu movimento estilhaçou-se em mil pedaços após a sua morte e, hoje, é apenas um rótulo que não serve para identificar nada.
Evo Morales está muito longe de ser um Perón, mas as pesquisas mais recentes ainda o apontam como vencedor de um eventual segundo turno, se de fato se candidatar, 13 pontos à frente de Carlos Mesa, ex-presidente.
O que ameaça de fato populistas, quase todos de tendências autoritárias, é um fenômeno novo, presente na Bolívia como na Nicarágua: não é a economia deteriorada que dá combustível à oposição, mas o desejo de uma democracia plena e limpa. Na Bolívia, o crescimento deste ano deverá ser de 4,5%, espetacular se comparado aos vizinhos.
Não importa: “A resistência é política e social", ensina Gustavo Fernández. Acrescento: e liderada mais pela sociedade civil do que pelos partidos políticos.
Talvez seja o novo fenômeno político da região. A acompanhar.