Primeiro bloco afro do país e símbolo contra o racismo, Ilê Aiyê exibe seu baú

Mãe Hilda Jitolu deu a bênção ao filho Antonio Carlos quando ele lhe trouxe a ideia de criar o Ilê Aiyê, bloco afro de Salvador, em 1974. Mas tinha uma condição, a de que ela também saísse no cortejo.

“E ela saiu sempre, com a cadeirinha dela em cima do carro”, lembra o filho. Ele mais tarde descobriria o motivo daquela exigência, como a matriarca explicou a amigos: “Quis sair porque, se o meu filho for preso, eu também vou”.

Mãe Hilda expressava preocupação num momento endurecido do regime militar, e  não à toa. Primeiro bloco afro brasileiro, o Ilê tateou um terreno novo, levantando repressão da polícia e preocupação da sociedade baiana, que o tachou de racista por aceitar apenas negros em seu cortejo.

Na Quarta-Feira de Cinzas de 1975, após o desfile inaugural do Ilê, o jornal baiano A Tarde publicou um texto intitulado “Bloco racista, nota destoante”, chamando o desfile de “feio espetáculo”, com “enorme falta de imaginação”. Em crítica às motivações do grupo, concluía: “Não temos felizmente problema racial. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro”.

“O Ilê foi chamado de racista, mas na verdade ele foi criado para os negros se divertirem, porque eles não podiam sair em blocos como os brancos”, diz Vinícius Murilo, um dos curadores da mostra sobre o Ilê que o Itaú Cultural abriga a partir de quarta (3).

O filho de Mãe Hilda, Antonio Carlos dos Santos, 66, mais conhecido como Vovô —um terno demasiado grande na infância lhe renderia o apelido—, recorda-se que a ideia de fundar o bloco veio de conversas no bairro do Curuzu. 

“A gente observava que, nos blocos famosos, negro só podia participar carregando alegoria”, diz Vovô, hoje presidente do Ilê. Na época com 20 anos, ele simpatizava com o movimento black power americano e sugeriu que o bloco se chamasse Poder Negro.

Mas ouviu temores, em especial da mãe, de que o nome pudesse ser visto com maus olhos. “Muita gente achava que a criação daquele bloco negro era uma revolta”, diz Simoni Barbiellini, também curadora da mostra paulistana.

A alcunha em iorubá veio por sugestão de um amigo, que portava um dicionário da língua africana.

Chegaram a “ilê” (casa) e “aiyê” (o mundo terreno), que na tradução do bloco ficou “casa de todos”.
A casa do Ilê foi por muitos anos o terreiro de Mãe Hilda, local de congregação da comunidade do Curuzu. “Tudo acontecia ali, campeonato de botão, festa junina, festa de fim de ano”, conta Vovô.

Mas a matriarca, que participou dos festejos até próximo da morte, em 2009, fazia questão de separar o bloco de seu candomblé jeje. A religião fica restrita a cultos, ainda que haja no Ilê uma reverência à simbologia africana.

As cores do grupo representam a pele (preto), a riqueza cultural (amarelo), o sangue derramado nas lutas pela libertação (vermelho) e a paz (branco). Tudo se espalha nos tecidos usados a cada Carnaval. Como na tradição africana, na qual tecelagens contam histórias, os panos do Ilê narram o tema do cortejo do ano.

Os tecidos, por sinal, foram alguns dos itens redescobertos para a exposição. Os curadores encontraram no acervo do Ilê apenas 33 dos 44 panos, que ao fim dos Carnavais são reaproveitados como estofos e enfeites pelo bairro. Saíram de porta em porta no Curuzu até encontrar os 11 restantes. “Havia muito da história deles [no acervo], mas não de forma organizada”, diz Simoni.

Além de produzir material novo, com fotos e depoimentos, a produção da mostra encontrou documentos que revelam a luta contra o racismo —uma “militância suave”, como define a curadora— e a autovalorizarão do negro que marcaram a trajetória do Ilê.

Entre os itens, fichas de inscrição que perguntam a identificação de candidatos com a cultura negra. “Quanta gente recebemos definindo sua cor não como negro, mas como ‘marrom-glacê’, ‘chocolate’. A gente sempre quis isso, que as pessoas descobrissem sua negritude”, afirma Vovô.

Numa carta aos jurados do concurso anual Deusa do Ébano, o grupo deixa claro: “Não estamos preocupados com um padrão de beleza negra que se aproxima do padrão branco; muito pelo contrário —queremos e precisamos preservar a beleza negra”.

Mas é nas músicas, que influenciaram nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Margareth Menezes e Daniela Mercury, que o Ilê melhor resume a exaltação à negritude. 

Seja em “Que Bloco É Esse?”(“Somos criolo doido/ Somos bem legal/ Temos cabelo duro/ Somos black pau”), seja quando questionam quem é “o mais belo dos belos”: “Sou eu, sou eu/ Bata no peito mais ​forte/ E diga: Eu sou Ilê”.

Ocupação Ilê Aiyê
Itaú Cultural, av. Paulista, 149. Abre qua. (3), às 20h. Ter. a sex., das 9h às 20h. Sáb. e dom., das 11h às 20h. Até 6/1/2019. Grátis. Shows em 5 e 6/10, no Auditório Ibirapuera (R$ 30).

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