Raro na região, conflito traria assimetria entre forças militares
Desde 1995, quando Peru e Equador se enfrentaram brevemente para disputar a região do rio Cenepa, a América do Sul é palco apenas de conflitos de Estados com entes subnacionais.
Uma eventual escalada militar da situação na Venezuela traria um cenário novo ao continente e diversas assimetrias para um campo de batalha que envolvesse o país e seus vizinhos ora antagonistas na crise atual, Brasil e Colômbia —esta, fortemente apoiada pelos Estados Unidos.
Cada país tem forças militares adaptadas para sua realidade política e geográfica, e o desenrolar de um embate dependeria muito do tipo de conflito a ser lutado.
O regime chavista, que desembocou na ditadura de Nicolás Maduro, fez fama ao introduzir equipamento militar russo avançado na região.
Hoje, possui a melhor defesa aérea do continente, com sistemas de longa distância S-300 complementados pelos de médio alcance Buk, além de lançadores manuais para proteção pontual Igla-S.
Além disso, a Venezuela ostenta os poderosos caças Sukhoi-30, os mais formidáveis do continente em potencial, seguidos de perto pelos F-16 de nova geração chilenos.
A questão envolvendo a existência desses dois ativos é dupla. Primeiro, eles teriam serventia em caso de uma guerra aberta, com risco de invasão terrestre, para proteger centros de comando centrais.
Mesmo nesse caso, não seriam páreo caso houvesse intervenção direta dos EUA.
Além disso, ninguém sabe o real estado operacional do equipamento, já que os russos não são famosos pela qualidade do seu pós-venda e a economia venezuelana colapsou.
Por fim, nunca é demais lembrar que esse cenário não parece realmente provável.
Nesse caso de uma guerra de fato, é de se especular se os americanos deixariam o serviço todo para seus colegas ao sul ou se participariam --o que faria a diferença em qualquer caso, mas deixaria aberta a porta para o confronto a interesses russos e chineses em solo, o que é sempre um risco político.
A ideia de um bloqueio naval, medida clássica nesse cenário, teria então de envolver os parcos submarinos brasileiros e colombianos em atividade muito distante de suas bases. O uso de fragatas e corvetas seria mais provável, mas ainda assim a hipótese parece basicamente fantasiosa.
Para escaramuças fronteiriças, algo que se anuncia como mais provável particularmente na crescente hostilidade com a Colômbia, os venezuelanos podem contar com helicópteros de ataque Mi-35 semelhantes aos que o Brasil opera na Amazônia, com grande dificuldade logística.
A geografia fala alto na inóspita região. Os 2.000 km de fronteira com o Brasil são basicamente florestas, com poucos pontos de acesso.
Não seriam vistos do outro lado da fronteira em Pacaraima os melhores tanques do continente, os 93 T-72 modernizados russos à disposição de Caracas.
Eles, assim como os diversos blindados comprados de Moscou, seriam mais úteis na longa fronteira seca com a Colômbia, a oeste.
Bogotá tem talvez as mais experientes Forças Armadas do continente, dadas as cinco décadas de enfrentamento com a narcoguerrilha e o estreito laço militar do país com Washington, que mantém mil soldados ainda por lá.
Não é por acaso que os colombianos não dispõem de tanques ou sistemas de lançamento múltiplo de mísseis —eles são basicamente inúteis no terreno amazônico no qual combateram as Farc e ainda lutam contra o ELN.
A Colômbia teria provavelmente mais sucesso numa intervenção limitada contra aquilo que parece ser o maior trunfo do chavismo, os cerca de 220 mil paramilitares armados com fuzis Kalachnikov.
As unidades de selva e as de intervenção rápida do Exército Brasileiro também se encaixam nesse cenário.
Tanto Brasília quanto Bogotá também operam os mais adequados aviões para esse tipo de combate no mercado, os Super Tucano da Embraer.
Numericamente, até por demografia a Venezuela é achatada pelo tamanho do poder militar dos vizinhos, ainda que ninguém pareça ter saúde financeira e logística para sustentar um confronto de fato. Mas a realidade é que ninguém quer uma guerra, apesar da retórica belicista da Colômbia e de alguns setores do bolsonarismo no Brasil, ambos inflados pelos EUA.
No caso brasileiro, a preocupação central dos militares é menos de um conflito entre Estados, mas sim com a eventualidade de ser dragado para intervir numa guerra civil no país vizinho sem um mandato da ONU.
Além disso, Roraima depende da energia da hidrelétrica de Guri, e um corte de abastecimento obrigaria ao custoso emprego de termelétricas (quase R$ 700 milhões/ano).
Por isso a resistência em insinuar o uso da força para viabilizar os corredores humanitários, como os EUA gostariam e a Folha revelou na quarta (20).