Revista científica publica pesquisas incompletas de refugiados

A interação entre estudantes e robôs de Lego em salas de aula na Síria. As origens da cultura de colaboração entre a população da Gâmbia. O histórico do direito de greve na Turquia. 

Aparentemente sem nada em comum, essas pesquisas estão reunidas nas páginas da mesma publicação porque compartilham uma realidade: autores que tiveram sua vida acadêmica interrompida por conflitos ou perseguição política em seus países.

O Journal of Interrupted Studies —periódico de estudos interrompidos, ou JIS, na sigla em inglês— foi criado por dois estudantes da Universidade de Oxford, no Reino Unido, para canalizar pesquisas de acadêmicos forçados a migrar para outros países.

A ideia surgiu em 2015, época em que imagens de barcos lotados de refugiados chegando à Europa fugindo de conflitos em países como Síria e Afeganistão passaram a dominar os noticiários internacionais.

​O alemão Paul Ostwald, aluno de relações internacionais na universidade britânica, e o anglo-argentino Mark Barclay, do curso de filosofia, consideraram a representação desses imigrantes muito limitada: ora eram vistos como um risco ou um problema, ora como dignos de piedade. Muitos europeus ignoravam que vários deles traziam “muito mais do que um punhado de roupas”, afirmam.

“Éramos estudantes de uma instituição muito renomada e quisemos usar esse privilégio para ajudar de alguma maneira”, contou Barclay, 23, à Folha. “Nossa ferramenta era a palavra, e criamos esse espaço onde eles pudessem se apresentar em seus próprios termos e com sua própria voz.”

O primeiro número do periódico saiu em 2016, com artigos de seis pesquisadores da Síria, Gâmbia, Jordânia e Etiópia. O segundo foi publicado dois anos depois, e a previsão é que o próximo número saia em duas ou três semanas.

A revista ganhou também uma publicação-irmã online de formato mais livre, a Interruptions, um espaço para artigos não acadêmicos, ficção, poemas e fotografias sobre a temática migratória.

O JIS publicar pesquisas completas ou que foram interrompidas. Os editores consideram que, em contextos como os vividos pelos autores, estudos não finalizados são “um documento em si mesmos”. 

“Foi fascinante, porque vimos que existe um interesse da ciência na publicação de trabalhos incompletos ou que tenham falhado”, diz Barclay. 

Ele ressalta que o foco é na qualidade do trabalho, e não na história pessoal dos autores. Todos os artigos passam por um processo conhecido no meio científico como “peer review” (revisão por pares), em que especialistas de cada área avaliam o texto e propõem ajustes.

A proposta, ressalta Barclay, é privilegiar a qualidade do trabalho, e não a história pessoal dos autores. Todos os artigos passam por um processo conhecido no meio científico como “peer review” (revisão por pares), em que especialistas de cada área avaliam o texto e propõem ajustes.

“Queremos fomentar um diálogo de respeito mútuo, que reconhece os autores pelo mérito do que têm a dizer, não por um status de vítimas. É um fórum acadêmico onde eles podem ser escutados como pares”, afirma.

Inicialmente, ele e Ostwald fizeram contato com campos de refugiados e organizações de integração de imigrantes para conseguir trabalhos para a publicação. Aos poucos, começaram a ser procurados diretamente pelos acadêmicos.

Alguns trabalhos abordam a temática migratória —o primeiro número traz um artigo sobre a integração de refugiados e outro sobre causas e efeitos da guerra síria, por exemplo. Outros versam sobre temas totalmente diferentes, de história da arte ao ensino de idiomas.

Também há espaço para novos formatos. Em um dos artigos, uma professora turca especialista em sociologia do trabalho analisa a cumplicidade entre governo e universidades de seu país na precarização laboral de acadêmicos. Além de analisar sociologicamente a situação, a autora conta como ela própria e vários colegas foram demitidos da universidade na qual lecionavam por terem assinado uma petição crítica ao governo.

Essa dimensão pessoal, incomum em artigos acadêmicos, chegou a ser questionada pelos revisores. Decidiu-se, no entanto, por mantê-la após a pesquisadora argumentar que a primeira pessoa, neste caso, era a melhor maneira de tratar a questão.

“Acredito que, em momentos históricos significativos, temos que repensar as formas de fazer análise sociológica”, disse a autora, Asli Vatansever, por e-mail, à Folha. 

Ela conta que, após ser demitida, conseguiu uma bolsa em Berlim, mas nesse período seu passaporte foi revogado. “De repente me vi, de fato, no exílio. Ainda estou na Alemanha, sem rumo e em busca de bolsas de pesquisa de curto prazo, esperando pelo melhor, mas me preparando para o pior.”

Vatansever decidiu enviar seu trabalho ao JIS porque “experiências extraordinárias exigem meios extraordinários para a disseminação do conhecimento”, diz. “É o que essa publicação oferece”, opina.

Segundo Barclay, o JIS ainda está “em sua juventude” em termos de reputação acadêmica, mas tem despertado interesse —ele vem sendo procurado por pessoas de outros países  querendo criar projetos similares em suas universidades, por exemplo. Para o futuro, o plano é conseguir publicar a revista duas vezes por ano.
 

Source Link

« Previous article Ceni, Muralha e Luxemburgo apoiam Sidão; veja manifestações
Next article » Perdão com sensatez