Rio de Janeiro | Milícia empresta dinheiro, cobra por 'proteção' e explora caça-níqueis
A fila sinuosa formada por crianças, mulheres e homens segue em passos lentos e curtos num exercício de equilíbrio sobre meio-fio, calçadas e até grades numa tentativa de evitar o esgoto que inunda a Rua do Amparo.
O nome da via soa a ironia, sobretudo, nos dias de chuva quando as águas chegam a um metro de altura. Os alagamentos fazem parte da rotina dos moradores de Rio das Pedras, comunidade da zona oeste do Rio erguida às margens da Lagoa da Tijuca, que cresceu desordenada e verticalmente no vácuo do poder público. Foi um dos bairros afetados pelos temporais do começo desta semana na capital.
À sombra do Estado, a região viu brotar o embrião da milícia mais poderosa em atividade no Rio de Janeiro: o Escritório do Crime.
O grupo paramilitar chefiado pelo ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) Adriano da Nóbrega transformou Rio das Pedras na capital de seu estado paralelo.
Lá, a menos de dez minutos da Barra da Tijuca, a informalidade e a ausência de políticas públicas serviram de alicerce para a expansão da organização criminosa que dita as regras e exige de moradores e comerciantes o pagamento de taxas de "proteção", ágio na venda de botijões de gás, garrafões de água mineral, centrais de sinal clandestino de TV, grilagem de terras, comercialização de lotes e imóveis, além da exploração de máquinas de caça-níqueis, espalhadas no comércio por toda a comunidade.
Morador observa alagamento em rua de Rio das Pedras, no Rio Imagem: Ricardo Borges/UOL
Tabela de preços
Em Rio das Pedras não é difícil acabar preso à rede de influência dos milicianos. Os valores variam de acordo com os lucros do negócio. Um restaurante, por exemplo, pode pagar até R$ 100 semanais. Quiosques e carrocinhas de cachorro-quente pagam de R$ 10 à R$ 20.
O dinheiro é recolhido por jovens em motos, os "frentes". Eles repassam os valores a outros integrantes da estrutura criminosa. É tudo segmentado: quem recolhe dinheiro do comércio não se mete na cobrança de taxa aos donos de veículos usados no transporte de passageiros, nem na coleta do dinheiro das máquinas de caça-níqueis. Os lucros do jogo vão direto para a caixa do Escritório do Crime - a milícia fica com 80% do arrecadado, o dono do estabelecimento com 20%.
Sistema de "lavanderia" de dinheiro
A associação de moradores de Rio das Pedras é peça importante no esquema de influência do estado paralelo na comunidade. Segundo investigações do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do MP (Ministério Público) estadual, a entidade servia como fachada para acobertar negócios ilegais da milícia. Em especial, a cobrança de taxas e a intermediação de pedidos de alvarás na prefeitura, sobretudo para empresas usadas por milicianos para lavar dinheiro obtido com atividades ilegais.
Uma das empresas citadas na investigação do Gaeco é a São Felipe Construção Civil Eireli, que está em nome de Benedito Aurélio Carvalho, flagrado em interceptações telefônicas oferecendo propina de R$ 3.000 a um servidor municipal pela liberação do alvará. A construtora, apesar de ser considerada de pequeno porte, seria responsável pela construção de inúmeros prédios na localidade. Aurélio figura como sócio de outras pequenas empresas e é citado na denúncia do MP como um dos principais "laranjas" dos milicianos. Ele está preso.
Na denúncia do MP há referência ao fato de o presidente da Associação de Moradores, Jorge Alberto Moreth, o Beto Bomba, ter acesso a informações privilegiadas sobre ações em planejamento pela polícia. O que justificaria a dificuldade para a polícia conseguir localizar Beto Bomba e o ex-oficial caveira, foragidos após operação policial.
Moradores do bairro carioca de Rio das Pedras, dominado por milícias na zona oeste do Rio Imagem: Ricardo Borges/UOL
Mercado imobiliário paralelo
A exemplo de Muzema, comunidade vizinha onde dois prédios desabaram na sexta-feira, Rio das Pedras possui também um comércio ilegal de imóveis.
Um prédio está sendo erguido num espaço espremido entre um campo de futebol e a rampa de acesso ao Pinheiro, localidade ocupada por edifícios, muitos deles ainda em obras. O vaivém de operários é grande, mas, lá, ninguém sabe informar a quem pertencem os empreendimentos imobiliários.
Em geral, os apartamentos são pequenos, tipo quitinetes, e negociados por valores entre R$ 38 mil e R$ 56 mil. À frente de um dos prédios, botijões de gás empilhados dentro de uma espécie de jaula são vendidos por R$ 89,90, valor com sobrepreço de R$ 22,45 em relação ao preço médio (R$ 67,45) registrado no Rio pela (ANP) Agência Nacional de Petróleo. A cobrança de ágio na venda de gás é apontada como uma das muitas fontes de receita da milícia. Enquanto Beto Bomba segue foragido da Justiça, a associação de moradores tem um pastor ocupando interinamente a presidência, segundo informou ao UOL o diretor de patrimônio, que se identificou apenas como Júnior. Ele foi descrevendo as principais carências de Rio das Pedras:
A falta de saneamento básico é nosso maior problema. Quando chove, vários pontos da comunidade ficam alagados, principalmente, próximo ao canal e à Lagoa da Tijuca. Rio das Pedras cresceu, hoje tem mais de 200 mil habitantes, 90% imigrantes vindos do Nordeste. Crescemos na informalidade e no máximo 5% dos imóveis pagam IPTU.
Júnior, da Associação de Moradores de Rio das Pedras
O rapaz ainda acrescenta: "O prefeito (Marcelo Crivella) queria construir prédios com muitos andares aqui, mas como não conseguiu, largou a gente de mão. Numa das visitas que fez, ele disse que 30% dos imóveis eram de milicianos, mas não disse de onde tirou esse número", reclamou Júnior.
Os números citados pelo diretor de patrimônio ilustram o abismo entre o oficial e o paralelo na localidade. De acordo com o censo do IBGE de 2010, Rio das Pedras tinha 64,6 mil habitantes distribuídos em pouco mais de 22 mil domicílios. Apesar do plano de investir na construção de prédios de 12 andares na comunidade, a prefeitura não conta com estatísticas atualizadas sobre a região.
O IPP (Instituto Pereira Passos), autarquia municipal responsável pelo planejamento urbano da cidade, informou à reportagem que usa os mesmos dados defasados do IBGE. Rua inundada no bairro carioca de Rio das Pedras Imagem: Ricardo Borges/UOL
"Essa conversa afasta as pessoas"
Em um cenário onde predomina a informalidade, os milicianos impõem pelas armas as regras de convivência social. Falar em paramilitares dentro de Rio das Pedras tem o mesmo efeito que perguntar sobre tráfico em áreas sob influência de facções criminosas. "Esse é o tipo de conversa que afasta as pessoas", diz um comerciante sob a condição de anonimato. O temor de estar sendo observado é tamanho que o comerciante só aceitou conversar a quilômetros de distância, na Barra da Tijuca:
Na prática, a diferença entre Rio das Pedras e Rocinha, por exemplo, está na exibição de armas. Em favelas dominadas pelo tráfico, os envolvidos com o crime andam com fuzis, pistolas e granadas. O que aumenta a sensação de insegurança do morador, que teme a todo instante pelo início de um tiroteio. Com a milícia é diferente, não há armas nas mãos dos milicianos, mas a sensação de estar sempre sob observação é maior.
Comerciante de Rio das Pedras que pediu anonimato
Segundo o comerciante, os milicianos não perdoam deslizes, como o tráfico, mas com uma diferença. Traficantes gostam de expor suas vítimas. Já os milicianos somem com elas e ainda tomam suas casas ou objetos de maior valor.
Taxas de juro, confisco e regras de conduta
Quem tem dificuldade para pagar as taxas pode recorrer a um empréstimo numa das financeiras dos milicianos. As taxas de juros cobradas conseguem ser ainda mais exorbitantes do que as praticadas pelos bancos. Quem não paga pode ter a televisão, a moto, o carro ou a casa confiscados, dependendo do valor da dívida.
Júnior, o diretor de patrimônio da associação de moradores, desconversa quando o tema milícia é abordado: "Aqui não tem essa violência que falam tanto. Ninguém é roubado no meio da rua. Se você é trabalhador não tem que se preocupar, mas se for vagabundo é outra história", conclui.
O vagabundo a que Júnior se refere é quem pratica pequenos roubos. As penas nesses casos podem variar de uma surra, passando pela expulsão da comunidade e até mesmo a morte. A venda de drogas já teve punição semelhante no passado, mas em alguns pontos nos extremos da favela é feita com discrição. E, claro, sob a proteção dos paramilitares.
Prefeitura não se manifestou
UOL enviou email à Prefeitura do Rio para saber a versão do prefeito sobre a afirmação feita por Júnior, o diretor patrimonial da Associação de Moradores, de que Crivella teria dito que 30% dos imóveis da região são de milicianos, mas a assessoria do prefeito não respondeu.
A coordenadoria da Secretaria Municipal de Transportes, responsável pela fiscalização do transporte de passageiros por vans e kombis, também não respondeu.
A secretaria de Polícia Civil diz que investigações sobre a atuação da milícia na região são rotina e cita a Operação Os Intocáveis, feita em parceria com o Ministério Público. Desta operação escaparam o ex-capitão do Bope, Adriano, e o presidente da associação de moradores em janeiro deste ano.
O miliciano é amigo do policial militar reformado Fabrício de Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), quando este foi deputado estadual. Queiroz admitiu ter indicado a mãe e a mulher de capitão Adriano para trabalhar no gabinete do filho mais velho do presidente da República, Jair Bolsonaro.