Roberto Schwarz reflete sobre quatro tentativas de modernização do Brasil

[RESUMO] A Folha publica em primeira mão uma entrevista do crítico literário Roberto Schwarz, na qual ele aborda alguns dos principais temas de seu trabalho. O material integrará livro com publicação programada para o final deste ano, no Chile.

A entrevista a seguir integrará o livro "Diálogos Sur-Sur: Década de 1960 y Transformaciones Culturales en Brasil y las Américas. Homenaje a Roberto Schwarz", uma antologia que reúne ensaios do crítico literário e comentários de outros escritores sobre a obra do intelectual brasileiro. A publicação está programada para novembro, no Chile.

Em respostas por escrito, Schwarz reflete sobre quatro momentos brasileiros de modernização frustrada, sob o signo de Machado de Assis, da antropofagia de Oswald de Andrade, do tropicalismo de Glauber Rocha e Caetano Veloso, e da luta contra o subdesenvolvimento segundo Antonio Candido.

 

A propósito de Machado de Assis, você nota que às vezes surgem obras que sintetizam a história de um país ainda sem história cultural consistente, que então se nutre de modelos estrangeiros como o europeu. Foi o caso do Brasil após a independência, mas também o caso das repúblicas latino-americanas que, depois de se livrarem da Espanha, continuaram a olhar para a Europa em busca de modelos. Nesse sentido, você acha que podemos ler a literatura de Machado não só como uma "alegoria do Brasil" mas também das aspirações das elites latino-americanas, sempre questionadas por um entorno neocolonial?

A obra de Machado de Assis sempre foi um problema para a nossa crítica.

Durante muito tempo ela foi vista como um corpo estranho na literatura brasileira. Fugindo à voga do romantismo patriótico e pitoresco, posterior à independência, ela pareceu pouco nacional a muitos leitores, para não dizer estrangeirada e sem sangue nas veias. Também o seu gosto pela análise, em prejuízo da aventura, apontava nessa direção.

Já aos contemporâneos naturalistas, fixados nas fatalidades de raça e clima, ela parecia alheia ao novo espírito científico. Para eles, um romance brasileiro não seria moderno sem os ingredientes apimentados da mestiçagem e do trópico.

Ainda assim, por razões difíceis de explicar, Machado era reconhecido como o maior escritor do país e o único com estatura universal. Uma síntese desse paradoxo se encontra num ensaio injusto e agudo de Mário de Andrade, que não incluía nenhum de seus romances entre os dez melhores de nossa ficção (!), embora se orgulhasse do compatriota genial, que o mundo ainda iria reconhecer como um dos grandes [ensaio "Machado de Assis", no livro "Aspectos da Literatura Brasileira"].

Hoje há certo consenso quanto à extraordinária acuidade social e nacional de seus contos e romances, sem falar em seu alcance crítico e modernidade estética.

A viravolta se deu devagar e passo a passo. Em 1935, Augusto Meyer publicou [no livro "Machado de Assis (1935-1958)"] um conjunto de pequenos artigos que mudavam o quadro. Em lugar do mestre da língua e do decoro, um tanto engravatado e insosso, que merecia o aplauso do establishment, entrava um Machado perverso, um moderníssimo "monstro cerebral", próximo de Dostoiévski, Nietzsche e Proust. O prosador arquicorreto, amigo dos clássicos, a quem nunca faltava uma citação de Aristóteles, Santo Agostinho, Erasmo, Pascal, Schopenhauer etc., na verdade escondia um escritor de ponta, dos mais irreverentes.

Meyer arrancava Machado à companhia dos literatos oficiais e convencionais e o aproximava dos grandes espíritos do tempo, o que ajudava muito a perceber a sua genialidade, mas tornava mais difícil ainda entender a sua relação com o acanhamento da cultura nacional.

O problema seria solucionado por Antonio Candido, num capítulo de síntese sobre a nossa ficção romântica ["Temas e expressão", no livro "Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, 1750-1880"]. A tese do Machado universalista, influenciado pelos grandes da literatura ocidental, mas indiferente às letras e realidades locais, era posta em xeque. Ao contrário da voz corrente, Candido observava que o romancista havia estudado e aproveitado em detalhe a obra de seus predecessores brasileiros, figuras secundárias, muito menores do que ele, mas cuja contribuição foi substantiva. Este ponto é central.

Sob o signo da cor local e de sua magia, a ficção romântica havia cumprido um programa de incorporação literária das regiões, dos costumes e das realidades sociais do país, recentemente emancipado. Tratava-se de um programa patriótico e quase sociográfico, o qual em pouco tempo produziu uma pequena tradição de romances mais ou menos estimáveis, que satisfaziam o gosto de um público pouco exigente, embora sequioso de identidade nacional1.

Pois bem, com memorável tino crítico, Machado soube enxergar nesses livros provincianos um substrato de outra ordem, com possibilidades diferentes, de grande literatura, o qual iria explorar. Algo como um negativo da modernidade, à qual eles aludiam por contraste e, bem pesadas as palavras, por ingenuidade e pelo que deixavam a desejar, projetando um avesso insuspeitado.

Por inesperado que isso fosse, a trivialidade amável do localismo romântico trazia latente um fundo poderoso, o complexo tão brasileiro do liberal-escravismo clientelista, com seu labirinto próprio, sem nada de ameno. Este fazia ver —desde que os óculos fossem machadianos— uma inserção diferenciada no presente do mundo.

Em suma, as relações sociais não burguesas da ex-colônia (escravidão, dependência pessoal direta, pseudo-ordem burguesa), bem como a sua elaboração pela prosa romântica, forneceram a Machado uma argamassa histórica densa, de imprevista repercussão contemporânea, que lhe permitiu a aventura de sua obra moderníssima.

Difícil e profundamente dialética, essa conexão é um dos segredos da literatura machadiana. O prosador erudito, impregnado de clássicos e cosmopolitismo elegante, que havia monopolizado até então as atenções da crítica, não desaparecia, mas era sobredeterminado, com infinita ironia, pelo conjunto das relações sociais locais em que se banhava, que eram tudo menos requintadas.

Nesta dissonância surpreendente, a estreiteza provinciana adquiria um relevo e uma profundidade notáveis, que eram uma qualidade nova, de alto humorismo, além de exata socialmente. Encasacado em seu repertório culto e europeizante, evoluindo numa situação retardatária, marcadamente de segunda classe, a que não faltava o elemento bárbaro, o narrador machadiano transformava-se em personagem emblemática e problemática, na verdade um grande achado realista. Reconfigurado pelo contexto, encenava uma comédia ideológica original, característica da vida na periferia da ordem burguesa, ou melhor, nas sociedades em processo de descolonização.

Assim, voltando a sua pergunta, Machado não começava do zero. Quando escreveu as "Memórias Póstumas de Brás Cubas", seu primeiro grande livro, em 1880, ele dava continuidade a 40 anos de tentativas ficcionais anteriores —resta ver, é claro, que tipo de continuidade.

Com mais e menos talento, os seus antecessores haviam escolhido e fixado um acervo de paisagens, situações características, tipos sociais interessantes, conflitos de classe, timbres de prosa e humor, pontos de vista narrativos, modelos estrangeiros etc. Tomadas em si mesmas, essas opções iam do desastrado ao divertido, do banal ao curioso, do conformista ao irreverente, mal ou bem colocando em perspectiva e formalizando algum aspecto da realidade local.

O conjunto é modesto e representa o esforço de autoconhecimento e autofiguração de uma sociedade nacional incipiente, que procurava a si mesma por meio da imaginação romanesca. Talvez não seja injusto dizer que a atenção que esses livros ainda hoje merecem do leitor exigente se deve a seu papel na preparação da obra machadiana —preparação naturalmente involuntária.

Com efeito, Machado não só levou em conta esses romances medianos, como enfiou neles a "faca do raciocínio" —expressão sua—, para lhes testar a substância, tanto social como artística, e tirar as consequências do caso, como escritor que não aceitava ser iludido. Com perspicácia absolutamente fora do comum, que até hoje deixa boquiaberto, ele pôs à prova da realidade e da consistência interna o trabalho literário de seus confrades, o qual retificava.

Entusiasmo patriótico, santidade das famílias, ordem social, normalidade psíquica, soluções de linguagem e forma, importação de modas literárias, ideias correntes, certezas do progresso, tudo foi examinado criticamente, estabelecendo um patamar de consciência inédito no país (embora não reconhecido) e raro em qualquer parte.

Digamos então que a continuidade refletida com uma tradição de segunda linha lhe permitiu dar um passo extraordinário, uma superação crítica em grande estilo, paradoxalmente moderna, que talvez seja a sua maior lição como artista pós-colonial.

Ainda em relação à sua pergunta, o salto qualitativo de que falamos tem vários ensinamentos contraintuitivos. 1) A força negadora e superadora da grande literatura pode ter uma dívida importante com as limitações do universo artístico a que ela se opõe.

2) Em países periféricos, a invenção formal não nasce da recusa dos modelos metropolitanos, mas de sua verificação crítica pela experiência local, a qual se transcende e universaliza através desse confronto.

3) Talvez seja verdade que a produção artística de países na periferia tenda a adquirir uma dimensão suplementar de alegoria nacional, já que a experiência de incompletude e inferioridade relativa é um fato ubíquo da vida nesses países, experiência inescapável, que tinge os seus esforços de superação e neste sentido os alegoriza. Entretanto, em romances de tipo mais ou menos realista, a substância do trabalho artístico está na incorporação e transfiguração de relações reais, que lhes dão o peso representativo, que só secundariamente participa do convencionalismo da abstração alegórica.

4) De fato, o narrador machadiano passeia o seu refinamento cosmopolita pelo ambiente pitoresco da ex-colônia, entre relações atrasadas e bisonhas, sem proporção com a envergadura e a complexidade dele próprio, o que pode ser visto como um emblema das elites latino-americanas, que nalguma medida compartilham essa situação.

Mas por quê "alegoria"? Ele não é a figura convencionada de uma entidade abstrata —suponhamos a Justiça, a Indústria, a Finança, o Brasil—, e sim a síntese de uma condição histórica real, apreendida num lance de gênio. Dito isso, esta apreensão é apenas a metade da proeza. A outra metade, maliciosa ao extremo, está na transformação desse narrador —uma personagem decididamente criticável—, em princípio formal, em gerador da invenção literária e em organizador da ficção.

Você afirma no seu último livro, "Martinha Versus Lucrecia", que tanto o tropicalismo quanto a antropofagia de Oswald de Andrade eram programas estéticos do Terceiro Mundo. O que você quis dizer com isso? Por outro lado, mas também nesse contexto, você não acha que é um pouco injusto com Oswald de Andrade ao aproximá-lo tanto do tropicalismo? Afinal, a antropofagia dele vestiu-se de vermelho, e "O Rei da Vela", apesar do que se fez depois, era uma peça de crítica da burguesia e de sua aliança com o capital estrangeiro.

A poesia antropófaga de Oswald de Andrade, que é piadista desde o título, tem uma fórmula simples e genial no seu minimalismo.

Trata-se da contraposição a seco, em espírito de montagem vanguardista, de imagens representativas do Brasil moderno e arcaico, escolhidas a dedo pela vivacidade do contraste. Muito dissonante, com algo de blague e disparate, o resultado é visto como alegoria humorística do país, captado em seu afã comovente de superar o atraso. Como o procedimento artístico é de ponta, impregnado da irreverência da revolução literária europeia, o conjunto respira otimismo e leveza, e como que promete uma colaboração feliz, para não dizer utópica, de seus três tempos desencontrados —pré-moderno, moderno e revolucionário— que convivem dentro do poema.

Em 1967, 40 anos depois, também o tropicalismo acopla o ultrapassado e o ultramoderno, a data vencida e o dernier cri, ou melhor, justapõe imagens tomadas ao antigo Brasil patriarcal e técnicas do pop internacional mais recente.

O ar de família com a antropofagia oswaldiana é evidente, com uma diferença. Enquanto em Oswald o entrechoque dos tempos é a promessa de um futuro nacional alegre, em que passado e modernidade se integram sob o signo da invenção e da surpresa, no tropicalismo ele é a encarnação do absurdo e do desconjuntamento nacionais, de nossa irremediável incapacidade de integração social, enfim, do fracasso histórico que seria a nossa essência. Como diz o próprio Caetano Veloso, a propósito de seu momento mais radical, nunca a canção popular no país havia chegado a tal grau de pessimismo.

Em perspectiva histórica, tratava-se —a meu ver— de uma formalização poderosa e sarcástica da experiência social-política de 1964, quando a contrarrevolução conjugou a modernização capitalista à reiteração deliberada das iniquidades sociais de sempre, as quais reconfirmava. A imagem-tipo do tropicalismo encapsulava a experiência tão desconcertante, e latino-americana, do progresso que repõe o atraso em lugar de superá-lo. Poesia em pílulas, como em Oswald, mas cuja substância era uma espécie de reincidência no erro, contemplado com repulsa e fascinação —o famoso "Absurdo Brasil" [título de uma antologia de ensaios publicada na Argentina].

Assim, antropofagia e tropicalismo são programas estéticos do Terceiro Mundo, que respondem às questões da modernização retardatária. Oswald com certa euforia, no início do processo desenvolvimentista, e Caetano com desencanto estridente, quando as perspectivas do nacional-desenvolvimentismo parecem se fechar. A captação da energia histórica é vigorosa nos dois casos —vestida de vermelho ou não—, que por isso mesmo são momentos incontornáveis de nosso debate cultural.

Como observa [o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus] Enzensberger [no livro "Tumult", comoção], é mais fácil transformar o subdesenvolvimento em arte do que superá-lo. A observação é interessante, mas, como notou Vinicius Dantas [organizador dos "Textos de Intervenção", de Candido], também a crise do Primeiro Mundo é mais fácil de transformar em arte que de superar.

Talvez possamos utilizar a descrição da literatura de Machado de Assis como capaz de "caracterizar e sintetizar o momento histórico de um país" para pensar o filme "Terra em Transe" estreado por Glauber Rocha em 1967. Muitos críticos literários e culturais da esquerda coincidem em qualificá-lo de profético quanto ao que viria a acontecer não só no Brasil após o AI-5, mas também na América Latina com o assassinato de Che Guevara no mesmo ano de 1967 e o início das ditaduras militares do Cone Sul. Glauber inspirou-se em Che Guevara para imaginar a personagem de Paulo Martins e teve a ideia de fazer outro filme sobre os últimos anos do guerrilheiro argentino em conjunto com Cuba.

Até onde vejo, o foco de "Terra em Transe" está na crise de 1964, quando o vasto processo da democratização brasileira foi derrotado pela direita civil-militar, com apoio americano.

O filme está vivo até hoje graças à coragem e à exaltação operística com que enfrenta os impasses da esquerda. O autoexame se faz através da figura de Paulo Martins, um poeta-jornalista sequioso de absoluto, criado entre as benesses da oligarquia e convertido à causa popular e à estratégia do Partido Comunista.

Deliberada e impiedosamente problemática, a personagem se debate entre os chamados do erotismo, da revolução, do privilégio, da disciplina partidária e da morte, a cujo encontro vai na cena final, de metralhadora na mão. Entre esperanças, lutas, discussões políticas violentas, contradições, traições e recuos, o conjunto encena um percurso intelectual em direção à luta armada.

A caminhada com certeza é representativa daquele momento, mas o achado que torna profundo e enigmático o filme depende de mais outra dimensão. Desde o começo, há um baixo-contínuo popular que destoa da ação, composto por tambores, cantos e danças rituais, pela massa mestiça e miserável, subalterna, alheia à discussão política entre os brancos, vivendo outro tempo.

É o aspecto tropicalista de "Terra em Transe", em que os procedimentos vanguardistas do filme, bem como a sua intriga moderna, se contrapõem com incongruência ostensiva ao substrato de relações coloniais que continua vivo no país.

É um descompasso de alcance histórico-político incalculável, codificado na realidade brasileira e também continental, na estética tropicalista e, de outro modo, na ficção de Machado de Assis. Quanto à semelhança entre Paulo Martins e Guevara, posso estar enganado, mas não me convence.

Falando do crítico literário ou cultural como um "metapensador", como você disse em alguma oportunidade, a nossa região apresenta desafios e problemáticas diversas das examinadas por Antonio Candido em uma obra como "Literatura e Subdesenvolvimento" ou por você em "Cultura e Política, 1964-1969", mas são desafios e problemáticas herdados daquele intenso momento histórico que vocês analisam nessas reflexões. Você gostaria de comentar?

"Literatura e Subdesenvolvimento" faz pela literatura o que os outros clássicos da teoria do subdesenvolvimento fizeram para a economia e a sociologia. É um ensaio para ler e reler. É dessas raras reflexões que organizam a experiência cultural de um país e de um continente.

No essencial, estuda a superação da velha e acomodada "consciência amena do atraso", que vinha da independência e do romantismo e para a qual o progresso era algo que chegaria naturalmente, mera questão de tempo. No polo oposto a esse otimismo provinciano e quase infantil, de ex-colônia, irá surgir a "consciência agônica" desse mesmo atraso, visto como catástrofe contra a qual é preciso lutar com urgência.

Noutras palavras, o sentimento autocomplacente do "país novo", cheio de promessas, mas conservador no fundo, cede o passo à consciência realista do "país subdesenvolvido", com adversários externos e internos e para o qual o futuro é um problema. A inflexão começa por volta de 1930 e se aprofunda nos anos de 1950.

No Brasil, a sua primeira manifestação foi o romance do Nordeste, que trouxe a miséria e o atraso da região ao debate nacional. No decênio de 50, o problema ganhou dimensão conceitual na teoria do subdesenvolvimento, com desdobramentos em todos os planos da vida, que de repente se descobria subdesenvolvida de A a Z. Como começava a ensinar Celso Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa transitória, que precede o desenvolvimento pleno, mas um estágio e um modo de viver que tendem a se reproduzir ou agravar caso nada seja feito.

Na esfera da cultura, por exemplo, o sonho dorminhoco e regressivo da originalidade nacional absoluta, que no limite exigia a "supressão de contatos e influências", tem de ser substituído pela constatação sóbria mas polêmica da dependência e, no melhor dos casos, da interdependência generalizada, que leva ao questionamento estético-político em toda a linha.

É claro que o abandono das ilusões iniciais de autarquia tem algo de progresso crítico, apontando para um horizonte menos iludido, ou mais relacional, em que a originalidade almejada resulta da influência recíproca e livre entre as nações.

Por outro lado, é claro também que este horizonte é ilusório por sua vez, pois as realidades do imperialismo e de nossas estruturas sociais inaceitáveis, postas em evidência pela teoria do subdesenvolvimento, fazem da reciprocidade universal um voto pio.

No passo seguinte, o enfrentamento continuado com a iniquidade das estruturas e do imperialismo tende a criar o intelectual revolucionário, cuja figura assinala um novo patamar.

Por sua vez, “Cultura e Política, 1964-1969” recapitula a movimentação intelectual e artística do primeiro período da ditadura em seguida ao golpe da direita. Dentro de muita diversidade, a franja avançada das artes —arquitetura, cinema, teatro, canção, artistas plásticos— bem como do movimento estudantil e da própria discussão política havia reagido com valentia ao truncamento do processo democrático que apontava para o socialismo. 

Em todas estas esferas a interrupção antidemocrática foi recebida como um acinte, uma volta a formas de vida mesquinhas e superadas, que seria grotesco tolerar. A indignação correspondente esteve na base das posições artísticas do período, e também da passagem duma fração dos estudantes à luta armada, sem falar noutros setores dispostos a enfrentar algum grau de ilegalidade. 

Nesta linha, refletindo sobre as razões da derrota de 1964, uma parte da esquerda responsabilizou pelo desastre a política de conciliação de classes recomendada pelo Partido Comunista, que havia naufragado sem luta, a despeito da amplitude do movimento. Muito convincente até segunda ordem, a crítica de esquerda empurrava à radicalização em todos os campos, seja estéticos, seja políticos, desembocando na alternativa ainda não testada, a oposição pelas armas. 

A opção parecia uma vitória da consequência sobre a acomodação e prometia abrir horizontes históricos novos —que em seguida se provariam ilusórios por seu turno, com a vitória brutal, mas relativamente fácil, da ditadura, que triunfava sobre a esquerda pela segunda vez. 

À derrota da conciliação seguia-se a derrota da radicalização, deixando por terra o socialismo e anunciando o que talvez seja o horizonte contemporâneo, de capitalismo sem alternativa à vista. 
Tanto “Literatura e Subdesenvolvimento” como “Cultura e Política” tinham a possibilidade da revolução como uma de suas coordenadas. Os dois ensaios foram publicados em 1970, inicialmente no estrangeiro, pouco depois de decretado o AI-5, que conferiu à ditadura a sua feição mais tenebrosa. 

Na esfera política, talvez se possa dizer que a luta armada se bateu por um imenso campo popular, rural e urbano, desassistido e em boa parte analfabeto (50% à época), o qual contudo não tomou muito conhecimento do que se passava. A implantação rarefeita, para não dizer mínima, que tornava improvável o apoio social à luta, se traduziu também na qualidade intelectual de seus escritos ou panfletos, que lidos hoje dão uma impressão terrivelmente irreal. 

Não assim no âmbito da cultura, onde, a despeito da derrota política, os resultados foram excelentes e duradouros. Aqui, o mesmo desejo revolucionário de ruptura vanguardista e inclusão popular teve eco profundo, de outra densidade. 

A revolução consistia em forçar a estreiteza da cultura burguesa, em reinventar as formas culturais e artísticas com vista na massa dos excluídos e semiexcluídos, a saber, segundo a circunstância, os estudantes pobres, os trabalhadores urbanos e mesmo o povo rural. 

Esta aspiração convergia com o espírito meia-oito internacional, com tendências profundas do modernismo brasileiro, que a seu modo havia visado algo parecido na década de 1920, além de responder à realidade social do país, à qual dava visibilidade, com resultado artístico muito bom. 

Sem prejuízo da derrota política, o movimento cultural do período, com as suas ousadias formais e temáticas, tornava presente o valor da radicalidade estética e extraestética. A vitória da direita não impediu que as posições da esquerda daquele período alimentassem o melhor da cultura brasileira de então até hoje, 50 anos depois. 

Dito isso, é claro que o atual aprofundamento da mercantilização e o enquadramento consumista-miserabilista dos antigos excluídos são adversários quase invencíveis, que requerem respostas novas. 

 

RAIO-X

Roberto Schwarz, 79

Graduado em ciências sociais pela USP; mestre em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de Yale.

Doutor em estudos latino-americanos pela Universidade de Sorbonne (Paris 3), com a tese "Ao vencedor as batatas", publicada em livro em 1977. 

Professor de teoria literária na USP e na Unicamp, onde se aposentou em 1992.

 

Bruna Della Torre de Carvalho Lima, doutora em sociologia pela USP, é editora-executiva da revista Crítica Marxista e autora de “Vanguarda do Atraso ou Atraso da Vanguarda? Oswald de Andrade e os Teimosos Destinos do Brasil” (no prelo).

Mónica González García, doutora em literaturas hispânicas pela Universidade da Califórnia, é professora da Universidade Católica de Valparaíso (Chile).

Adams Carvalho é pintor e ilustrador.

1 Antonio Candido, “Visão do país”, em “Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, 1750-1880”, Ouro sobre Azul. Rio de Janeiro, 2017, pp 432-34.

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