Rubem Braga para presidente

Tenho me apanhado pensando o que o grande Rubem Braga (1913-1990) escreveria sobre o atual momento do país nos textos que batucava em ritmo industrial na máquina de escrever, cercado de árvores frutíferas e passarinhos em sua cobertura de Ipanema.

Mas que importa o que diria um escritor morto sobre um século que não chegou a ver? Antecipo a pergunta do leitor irritado (ah, como eu o compreendo!) e peço-lhe um voto de confiança pelo próximo punhado de parágrafos, ao fim dos quais, prometo, não sairá de mãos vazias.

Limita-se a isso, promessa e tamanho, o modelo textual conhecido como crônica. Tendo no capixaba Braga seu gênio maior, a crônica ganhou no país ao longo do século 20 alturas estéticas que chegam a sugerir uma contribuição original brasileira ao cardápio universal dos gêneros.

Vamos com calma. De um lado, é óbvio que o Brasil não inventou o textinho leve de jornal assinado por literatos. Do outro, a crítica tradicional sempre se esmerou em classificar a crônica como gênero menor, contingente, superficial e —definitivo prego no caixão— jornalístico.

Que esses adjetivos são inadequados ou pelo menos insuficientes para qualificar nossa melhor produção pode ser conferido no recém-lançado Portal da Crônica Brasileira, vasta galeria virtual de textos que é uma das melhores notícias do Brasil este ano em qualquer área.

Parceria do Instituto Moreira Salles com a Fundação Casa de Rui Barbosa, o portal tem milhares de crônicas digitalizadas —sempre que possível, os próprios recortes de jornais e revistas em que os textos saíram pela primeira vez (os que iriam parar em livros) ou pela única vez (a maioria).

No time de autores da estreia, além de Braga, estão Antonio Maria, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Otto Lara Resende. Faltam nomões, alguns imensos, como Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade. Trata-se de obra em construção.

A convite dos organizadores, participei do lançamento do portal no IMS Rio, mês passado, batendo um papo público com seu editor, o jornalista e escritor Humberto Werneck. Falamos de muita coisa, inclusive de nossa discordância sobre o vetor "jornalístico" ser estruturante do gênero, ideia que Werneck rejeita e que eu defendo —com a ressalva de que isso não rebaixa a crônica em nada.

O que, na escassez do tempo, faltou abordar aquela noite me assombra desde então na forma da pergunta ali de cima: o que diria Rubem Braga sobre o Brasil de agora, essa atmosfera tóxica, esse duelo de rejeições absolutas, essa eleição?

Ou seja, o que pode ensinar a melhor safra da crônica brasileira, escrita entre os anos 1930 e 1970, aos brasileiros crispados de hoje, cada vez mais incapazes de compreender a crônica se não a anabolizamos com doses maciças de articulismo, de opinião?

Aquele cruzamento de lírico e narrativo enchia nossos jornais e revistas —coalhados de más notícias, vamos combinar que nunca amarramos cachorro com linguiça— de um olhar único: enviesado, falsamente despretensioso, cosmopolita sob o disfarce provinciano, sofisticado mas acessível a multidões pouco letradas.

Nos casos mais felizes, aqueles textos detonavam epifanias, abriam diante do leitor janelas revigorantes para além da realidade imediata —que já tinha a mania, nunca perdida, de ser tão feia. Pode-se chamar isso de ingenuidade. Eu prefiro chamar de sabedoria.

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