Saída de Özil da seleção acende debate sobre integração na Alemanha
A Alemanha começou o dia na segunda-feira mergulhada em um debate nacional sobre integração, racismo e esporte, depois que surgiu a notícia de que um dos mais célebres futebolistas do país estava deixando a seleção nacional, se declarando vítima de intolerância e hipocrisia.
Mesut Özil, astro da Alemanha campeã do mundo em 2014, anunciou que não jogaria mais pela seleção em uma série de longos posts na mídia social, depois de sofrer semanas de críticas por ter posado para uma foto com o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, e por seu desempenho na chocante eliminação da seleção alemã, na primeira fase da Copa do Mundo deste ano.
"Sou alemão quando vencemos, mas imigrante quando perdemos", escreveu o atleta, que nasceu na Alemanha, filho de imigrantes turcos.
Özil, 29, é visto como um símbolo do futebol alemão moderno e, por extensão, da Alemanha moderna, diversa - um meio-campista ofensivo que foi escolhido cinco vezes como melhor jogador da temporada pelos torcedores alemães e defendeu a seleção nacional por quase uma década. Sua súbita decisão de deixar a seleção trouxe à tona questões que fervilhavam em silêncio sobre a identidade étnica na Alemanha, e a interseção entre esporte e política.
"É causa de alarme que um grande futebolista alemão como Mesut Özil não se sinta mais desejado no país por conta do racismo, e que se sinta insuficientemente representado na DFB", afirmou Katarina Barley, ministra federal da Justiça da Alemanha, no Twitter, pouco depois do anúncio da decisão no domingo, se referindo pela sigla à federação alemã de futebol.
O repórter esportivo Martin Schneider escreveu no jornal Süddeutsche Zeitung que, mais que a eliminação prematura da seleção no torneio, "o fim da trajetória de Mesut Özil na seleção alemã é a verdadeira derrota deste verão".
Em maio, Özil e Ilkay Gundogan, outro jogador de origens turcas da seleção alemã, posaram para uma foto com Erdogan, o autocrático presidente da Turquia, que estava em campanha pela reeleição.;
Isso levou algumas pessoas a questionar a presença de Özil na seleção, e a foto foi criticada por muitos como partidária, em um país no qual as grandes figuras esportivas devem servir como exemplo apartidário de comportamento.
Em seguida, em junho, a Alemanha, que estava defendendo seu título, registrou seu pior desempenho na história moderna da Copa do Mundo —foi eliminada na Rússia antes da fase de oitavas de final. As denúncias contra Özil por alguns torcedores, comentaristas e dirigentes do futebol se intensificaram.
O diretor de futebol da seleção alemã, Oliver Bierhoff, parece ter questionado o desempenho de Özil em campo, dizendo que ele deveria ter ficado de fora do time. Reinhard Grindel, presidente da DFB (sigla da Federação Alemã de Futebol), exigiu publicamente que Özil explicasse a foto com Erdogan. Grindel em seguida foi criticado por não ter protegido o jogador contra ataques xenófobos.
Ao anunciar sua despedida da seleção, Özil escreveu que seu encontro com Erdogan não havia sido político, e que era "uma demonstração do meu respeito ao cargo mais alto" da Turquia.
Boa parte do que ele escreveu tinha por foco seus desacordos com Grindel, antigo membro do Legislativo, pelo partido de centro-direita da chanceler [primeira-ministra] Angela Merkel.
Özil se referiu a comentários de Grindel que descartavam o multiculturalismo alemão como uma mentira.
Ulrike Demmer, porta-voz de Merkel, elogiou Özil e disse que o futebol desempenhava papel importante em integrar os imigrantes à Alemanha. Ela disse que a chanceler respeitava a decisão de Özil de deixar a seleção, e que todos deveriam fazer o mesmo.
Mas as divisões profundas entre Özil e boa parte dos dirigentes do futebol alemão foram ilustradas na segunda-feira por Uli Hoeness, presidente do Bayern de Munique, que acusou o jogador de "esconder seu mau desempenho por trás da foto" com Erdogan.
A seleção multicultural da França não gerou debate semelhante sobre raça e identidade, este ano. É claro que a vitória da equipe no torneio, levando a Copa do Mundo para a França 20 anos depois do primeiro título do país, em 1998, ajudou.
Mas comentários vindos do exterior causaram reações - a mais notável das quais uma troca de farpas entre o humorista Trevor Noah, apresentador do "Daily Show", e Gérard Araud, embaixador da França em Washington.
O sul-africano Noah declarou orgulhosamente depois da vitória francesa que "a África venceu a Copa do Mundo", mas Araud rebateu rapidamente, escrevendo, no Twitter e em uma carta formal, que o apresentador do "Daily Show" não compreendia o modelo cultural francês.
As autoridades turcas não demoraram a celebrar a decisão de Özil de deixar a seleção alemã. Abdulhamit Gul, ministro da Justiça da Turquia, escreveu no Twitter que Özil "marcou seu melhor gol contra o vírus do fascismo ao deixar a seleção alemã".
Theo Zwanziger, ex-presidente da DFB, definiu a saída de Özil omo "um grande revés para esforços de integração que vão além do futebol, neste país", e disse que o episódio acarretava o risco de enviar a mensagem de que cidadãos cujos raízes estejam na imigração são "alemães de segunda classe".
A declaração de Özil obre a infame foto atingiu uma grande audiência - ele tem 23 milhões de seguidores no Twitter, mais que qualquer de seus antigos colegas de seleção, e a cobertura intensa do caso pela imprensa levou muitas outras pessoas a lerem o que ele escreveu.
Özil, que tem contrato com o Arsenal, da Inglaterra, até 2021, escreveu sua mensagem em inglês, garantindo ampla repercussão fora da Alemanha.
Intencionalmente ou não, as palavras de Özil a mídia social ecoavam as de outro alemão que se viu forçado a enfrentar a questão de uma identidade dual.
Em 1922, Albert Einstein disse em um discurso em Paris que "se minha teoria da relatividade for confirmada, a Alemanha me reivindicará como alemão e a França declarará que sou cidadão do mundo. Se ela não for confirmada, a França dirá que sou alemão e a Alemanha dirá que sou judeu".