'Se doesse no bolso, empresas não assumiriam os riscos', diz promotor do caso Mariana
Responsável pelos processos de reparação às famílias de Mariana (MG) que sofreram com o rompimento da barragem da Samarco, em 2015, o promotor Guilherme de Sá Meneghin diz que pouca coisa evoluiu na legislação brasileira após a tragédia.
Na ocasião, 19 pessoas morreram e um rastro de lama chegou até o litoral capixaba.
Para o promotor, o país precisa avançar na responsabilização de culpados e em leis para agilizar o ressarcimento aos atingidos.
Mais de três anos depois, ninguém foi preso, nenhuma vítima ainda foi indenizada —a expectativa é que o dinheiro comece a ser pago neste ano— e a tragédia se repetiu. No dia 25 de janeiro, uma barragem da Vale rompeu em Brumadinho (MG). São 166 mortos confirmados.
“O Brasil ainda tem aquela mentalidade de ver esses fatos como acidentes, coisas inevitáveis, como se não houvesse nenhum culpado”, disse ele, em entrevista à Folha.
“Tem de ter um processo especial de apuração em caso de desastres. Alguém tem de assumir a responsabilidade.”
Meneghin reclama de omissão da classe política, que não aprovou nenhum projeto de lei para apertar o cerco contra barragens perigosas.
“As consequências são terríveis. É morte, é destruição ambiental. As empresas têm de mudar a mentalidade, pensar também na segurança, e não só no lucro”, diz.
Houve algum avanço na legislação após a tragédia de Mariana?
De forma alguma. Na verdade, o que a gente viu foi total omissão do poder político.
Houve inúmeras audiências públicas, vários projetos de lei, tanto no Congresso Nacional quanto na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, mas nada foi aprovado para garantir maior segurança de barragens ou para proibir esse tipo de barragem, que é muito arriscada e deveria ser proibida.
A gente lamenta essa omissão por parte do Legislativo, que simplesmente ignorou os gritos das vítimas de Mariana.
Mas também não podemos esquecer que as empresas estão cientes dos riscos. As consequências são terríveis. É morte, é destruição ambiental. As empresas têm de mudar a mentalidade, pensar também na segurança, e não só no lucro.
Se está na mão das empresas, não deveria haver responsabilização de sua administração?
O Brasil ainda tem aquela mentalidade de ver esses fatos como acidentes, coisas inevitáveis, como se não houvesse nenhum culpado.
Historicamente, poucas pessoas foram punidas por desastres no país.
Tem de ter uma mudança em todas as autoridades, órgãos públicos e até mesmo na forma de aplicação da lei.
Tem de ter um processo especial de apuração de responsabilidade em caso desses
desastres.
Alguém tem de assumir a responsabilidade.
A responsabilização do comando das empresas não seria um incentivo para uma cultura mais preventiva?
A gente tem uma cultura de impunidade grande. Mas depende muito da investigação. Tem de ver de fato quem autorizou e quem se responsabilizou por aquele evento.
São vários elementos: há as pessoas que operavam o empreendimento, as pessoas que comandam a empresa, as pessoas que efetivamente decidiram como operar a barragem, as pessoas que contrataram as auditorias para atestar a estabilidade, tudo isso tem de ser analisado.
E o que já avançou, por exemplo em relação à tragédia de Mariana?
No que tange à questão penal, o Ministério Público Federal, que é responsável pela acusação, entrou com ação imputando ao ex-presidente da Samarco [Ricardo Vescovi] e outros 25 réus os crimes de homicídio, lesões corporais graves e crimes ambientais.
Esse processo está na fase de instrução, em que vão ser tomados os depoimentos das testemunhas.
Até o momento ninguém foi preso, não houve responsabilização penal. É um processo complexo, a apuração foi muito bem-feita, mas há essa morosidade processual.
E nas outras questões?
A questão ambiental está na Justiça Federal. Nesse processo estão sendo avaliados os danos ambientais por meio de perícias técnicas.
O Ministério Público Federal entrou com uma ação de R$ 155 bilhões na Justiça Federal. Mas o governo federal já tinha entrado com uma ação antes, que resultou em acordo para a criação da fundação Renova [que coordena o processo de reparação].
Esse processo, que considero muito negativo, teve o aval do governo federal e dos governos estaduais, mas não a participação do Ministério Público nem dos atingidos. Isso acabou resultando em uma situação muito prejudicial.
Por quê?
A Renova é muito burocrática, tem uma estrutura de decisão que demora muito. Eu acredito que isso é proposital, com o objetivo de atrasar, tentar vencer pelo cansaço, tentar de alguma forma economizar o dinheiro das empresas.
Ela funciona na verdade como uma espécie de dique de contenção para não chegar às empresas.
Nas ações que ajuizamos, tudo o que foi conquistado foi por meio da ação, não foi nada oferecido pelas empresas nem pela fundação Renova de forma espontânea.
As pessoas estão em casas alugadas até receber a residência, recebem auxílio financeiro e tiveram antecipações de indenização por causa da ação civil pública.
Em outubro do ano passado, fizemos acordo para indenizar as vítimas, que esperamos que seja concretizado no decorrer deste ano.
Já foram definidos os valores de indenização?
Não. O acordo prevê que as vítimas preencham um cadastro, é por critério de autodeclaração, qualquer pessoa que se sente atingida pode preencher. Se ela vai ser recompensada ou não, é outro problema.
Os cadastros começaram a ser entregues em janeiro, e a Renova tem 90 dias para fazer uma proposta de indenização.
Se a família aceitar, a Renova paga, é o ponto final na história. Se a família não aceitar, ela pode entrar com execução individual do acordo, em que ela vai tentar demonstrar qual deve ser o valor.
Colocamos no acordo uma cláusula muito importante para garantir o direito das vítimas: a inversão do ônus da prova. Tudo aquilo que a vítima declarar é considerado verdadeiro, e o réu é que tem de provar o contrário. Isso garante isonomia entre o poderio das empresas e a fragilidade das vítimas.
Que balanço o sr. faz do processo até agora?
É um balanço negativo, porque tudo teve de ser obtido na Justiça, é muito difícil conseguir com eles as soluções. E isso acaba levando mais tempo, causando mais sofrimento nas vítimas.
Mas não posso deixar de mencionar uma coisa importante: o Brasil não tem legislação especial para proteger vítimas de desastres.
Em um processo cível normal, a pessoa que sofreu o dano vai entrar na Justiça e só vai receber ao final do processo, que pode levar, um, dois, dez anos.
As mesmas regras processuais para essa situação de dano pequeno são aplicadas a quem perdeu tudo. A gente precisa ter legislação especial de proteção às vítimas para garantir o direito a casa alugada, assessoria técnica, antecipações de indenizações.
O que fazer para evitar que novos desastres ocorram?
Eu acho que seria importante termos uma legislação especial de proteção às vítimas de desastre.
Se tivéssemos, as empresas saberiam que teriam de pagar indenizações maiores, adotar maiores garantias dos direitos das vítimas e doeria no bolso. Doendo no bolso, pensariam duas vezes antes de tomar decisões arriscadas.
Hoje, elas sabem que conseguem enrolar isso por vários anos na Justiça, que pagarão indenizações muito menores do que em outros países. De certa forma, elas já contam com isso.
Guilherme de Sá Meneghin
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Promotor em Mariana (MG), atua no caso do rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco; é graduado em direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestre em direito penal pela UFMG