Sem pensar no esporte, Lais Souza planeja filho e velhice tranquila
Laís Souza, 29, carrega no corpo as marcas dos anos como atleta. No tornozelo direito está a tatuagem com arcos olímpicos e referências aos Jogos de Atenas (2004), Pequim (2008) e Londres (2012). Ela participou dos dois primeiros e foi cortada do último após fratura na mão.
Um pouco acima, no joelho, a grande cicatriz é uma lembrança das 12 cirurgias no local. Foram 17 no total durante a vida de ginasta.
Sentada em sua cadeira de rodas, vigiada o tempo todo pelo cuidador, que chama carinhosamente de “Baiano” ou “Nêgo”, Laís afirma estar feliz como nunca esteve nos últimos quatro anos.
“Estou me encontrando, pensando em formar minha família. Estou mais mulher. Estou sabendo o que é mais a vida porque me criei em uma casca de ovo, fechadinha ali nos treinos. Da ginástica fui para o esqui e continuei no mundo do esporte. Agora comecei [outra vida]”, afirma a ex-ginasta, em entrevista à Folha na última terça (9).
“Nêgo, tira o cabelo do meu rosto”, ela pede durante a conversa, ao lado da piscina do prédio para onde se mudou neste ano, em Vila Velha, no Espírito Santo. Venta muito.
É um processo de aceitação. De não se frustrar mais pela sensação de que as mãos estão gesticulando, quando na verdade estão apenas pousadas, imóveis, sobre as pernas.
Quase cinco anos após o acidente que a deixou tetraplégica, Laís ainda tem mentalidade de atleta. Nas duas horas de fisioterapia que realiza duas ou três vezes por semana, gosta de fazer os exercícios tentando imitar os movimentos que fazia no tempo em que era integrante da seleção brasileira.
O ortho walk, aparelho desenvolvido para ela em Ribeirão Preto (sua cidade natal), a deixa em pé e ajuda nas sessões de fisioterapia. Também a faz se sentir bem. “É gostosa a sensação de ficar em pé, ficar na minha altura, olhar nos olhos das pessoas. Isso é muito bacana, dá uma liberdade muito legal”, confirma, em um dos momentos em que sorri.
O tom de voz é baixo e o olhar parece desconfiado em alguns momentos. Mas os tempos de chorar se foram. Nos primeiros 12 meses após o acidente, ela lembra ter “chorado rios” e perguntado a Deus muitas vezes por que aquilo havia acontecido.
Laís sofreu lesão na terceira vértebra da coluna cervical em janeiro de 2014, quando treinava em Utah, nos EUA. Buscava vaga no esqui aéreo para os Jogos Olímpicos de Inverno, que aconteceriam naquele ano em Sochi, na Rússia.
Em alta velocidade, se chocou com uma árvore. A vértebra, além de quebrar, sofreu deslocamento e comprimiu as outras. A lesão medular foi total e comprometeu as funções motoras. Ela perdeu os movimentos, a sensibilidade e o controle de todos os órgãos abaixo do pescoço.
Laís não tem problema em falar daquele dia porque se lembra muito pouco do que aconteceu. Esquiava rápido e virou a cabeça para passar uma mensagem a Josi Santos, companheira de ginástica que também treinava no esqui.
“Jô, vem de lado e vem devagar”, gritou para a amiga. Quando olhou para frente houve o choque, mas se lembra apenas de tudo ficar preto. Acordou no hospital, onde teve muita febre e diarreia. “Meu organismo entrou em pane”.
Ela chegou a pesquisar sobre esportes paraolímpicos. Como forma de escapar, queria entrar em algum deles com afinco. Interessou-se pelo esqui adaptado. Carregou esse pensamento por alguns anos, até que resolveu se afastar.
“No começo pensei: vou entrar de cabeça, vou me adaptar a algum esporte que me faça voltar àquele mundo. Mas hoje, depois de muito tempo de cadeira [de rodas], do acidente, cai a ficha de muitas coisas. Da minha situação, da minha vida e da minha renda também. Eu não sei se vou voltar para o esporte”, admite.
As preocupações de Laís são mais práticas. A maior é como estarão as finanças na velhice. A mais imediata é ser feliz.
Em nome desta última, deixou São Paulo para morar em Vila Velha, de frente para o mar. Usa aliança na mão direita e vive com quem chama de “minha mulher”. Não quer dizer o nome porque não crê que isso seja da conta de ninguém, a não ser delas.
Há três anos, Laís revelou ser homossexual, embora tenha vivido relações heterossexuais no passado.
Agora consegue ir à beira da praia de vez em quando, passeia quase todas as tardes e desfruta de qualidade de vida que seria impossível obter em São Paulo. Também é mais barato morar em Vila Velha.
“A mudança ainda está acontecendo. Vou devagar para que possa pegar as rédeas da minha vida com a melhor qualidade possível, encarando como mulher mesmo. Já tinha pensamento de ter família, filho. Acho que foi bom essa alavancada para mim”, afirma.
Laís Souza busca começar uma família. Já tem a esposa, o cachorro Skank e o gato Baguera. Falta um filho.
“Quero muito, muito, muito. Não sei se minha saúde vai aguentar isso, mas quero muito, muito, muito. Ainda tenho uma família pequena, cachorro, gato... [Eles são] só um treinamento”, completa.
A conversa vai e volta, mas sempre retorna para as preocupações financeiras que possui. As situações mais banais custam dinheiro para Laís. O material necessário para urinar, por exemplo, tem de ser comprado por valor de R$ 10 a R$ 12 e é descartável.
A ex-ginasta tem renda de uma aposentadoria especial aprovada pelo governo federal em janeiro de 2015, no teto máximo permitido, R$ 5,6 mil.
Patrocinada pela Universidade Estácio de Sá, também faz palestras corporativas. Gostaria, mas não consegue atender à demanda por causa das restrições físicas.
O voo pode fazer com que tenha problemas de pressão arterial. Há uma série de cuidados que precisam ser tomados em viagens. Ela não pode se sentar ou deitar em qualquer lugar. A poltrona ou cama deve ter a densidade correta ou pode causar uma fissura.
Os eventos são marcados na medida do possível porque ela gosta da experiência e são fonte importante de renda. Não agora, mas para o futuro.
“Hoje faço palestras. Sou jovem, estou com cabelo bonitinho, não tenho rugas. Tenho disposição. Aí eu penso que lá na frente vou estar mais velha, não estarei tão disposta, terei mais problemas de saúde. Como vou me manter? Tudo o que tento fazer hoje é poupar dinheiro com a melhor qualidade de vida possível para que lá na frente eu ainda tenha [recursos]”, explica.
Laís vive a contradição de ter a pressa de ser feliz, mas a contínua preocupação sobre dinheiro e futuro. Ela mostra a cadeira de rodas, que já viu dias melhores. Foi comprada logo após o acidente por R$ 23 mil. O ideal seria trocá-la, mas no momento não é possível.
“Tento viver meus 29 anos, mas com certeza fico preocupada . Venho adotando [o pensamento] de que tenho de cuidar da minha vida e ser feliz nesse caminho”, conclui. O caminho é construir família em Vila Velha.
O esporte foi sua vida por muitos anos, mas hoje ela tem outras prioridades.