Sempre teremos Paris?
Não vou a Paris há quase dez anos. Eu sei, parece pedante, mas digo sem falsa humildade porque sei o quanto ralei para ir a Paris um dia e a partir dele repetir com a frequência de quem ia a Iguaba. Minha primeira viagem internacional (Paraguai pra comprar muamba não conta) só aconteceu aos 26 anos. Paris foi uma vontade realizada depois dos 30. Não tive Disney aos 15, nem carro aos 18. Precisei batalhar para ser meu próprio “pai rico”, a provedora das minhas viagens.
Não vou a Paris há quase dez anos. Há quase dez anos descobri que meu projeto de marido andava brincando pelado com uma colega de trabalho. Soube quando estávamos em Paris, hospedados num estúdio, pertinho da Notre-Dame.
Quando finalmente constatei o que já sabia há meses, corri para a igreja, não porque seja de igrejas, de santos, de orações, mas porque precisava de um lugar onde pudesse chorar toda minha putice e minha vergonha, sem ser olhada. Gosto de igrejas, não porque acredite nelas, mas porque elas acolhem os desesperados, os falidos, os doentes, os chifrudos. Somos iguais em nossos sofrimentos e ninguém liga se estamos descabelados, malvestidos, ranhentos. Corri para dentro dela, porque queria o conforto dos seus bancos desconfortáveis, para me ajoelhar e morrer de pena de mim mesma antes de me achar uma idiota e sentir raiva do mundo.
Se curar uma dor de corno em Paris deve ser puro glamour, descobrir o chifre em euros é ressaca que dói no bolso e da qual me lembrei religiosamente todos os meses que levei para pagar as 10 parcelas da passagem. Todo dia 5 eu tinha que pagar a fatura que arranjei ao atravessar o oceano para chorar em francês. Não é um bom negócio.
Não vou a Paris há quase 10 anos, época em que já tinha domesticado aquelas ruas e andava por todo canto com a intimidade de quem foi criada à base de croissant. Estive lá inúmeras vezes, para visitar amigas, para mostrar a cidade à minha mãe, a trabalho. Não é o lugar que mais amo no mundo, mas é certamente o mais bonito, mais encantador, um dos mais românticos, das grandes cidades.
Faltava celebrar por lá um romance. Passear no Sena, sentar durante horas naquelas mesinhas e nos embriagar de vinho, acordar tarde, transar em locais proibidos, e todos aqueles clichês cafonas e deliciosos de que são feitas as histórias de amor. E lá fui eu com meu projeto de marido, com quem eu já dividia o teto por mais de um ano, brincar de ser casalzinho apaixonado. Faltou combinar com os russos que aquela história não previa participações especiais, ainda mais sem a minha presença.
É horrível se descobrir corno. Ainda mais quando você não pode abraçar o próprio travesseiro e se refugiar no meio de suas coisas, dos cheiros conhecidos, no único lugar em que o mundo parece menos hostil, que é dentro de casa. Passei a me revezar entre o bar, que me anestesiava os sentimentos, e a igreja, que me dava a paz para que os pensamentos encontrassem a razão.
Peguei ranço de Paris, como se Paris fosse culpada pelo fato de que eu dividia a vida com uma cara que não conseguia controlar o pinto dentro das calças. Depois que passou, veio o medo. Medo de que houvesse algum tipo de macumba enterrada dentro de um sarcófago na ala egípcia do Louvre, que amaldiçoasse minha relação com qualquer bofe com quem eu aparecesse na cidade. Nunca mais fui.
E lá se passaram dez anos. E eu chorei vendo a Notre-Dame em chamas. Senti pena da cidade que quase perde seu coração. Chorei um pouquinho pelo meu próprio e de tantos outros que aliviaram suas dores, suas frustrações e seus infortúnios naqueles bancos que viraram cinzas. Tive saudade de todas as coisas que deixei de viver em Paris, por medo, durante esses 10 anos. E também raiva porque alguém foi capaz de estragar um amor tão gostoso. Amor pela cidade e não por ele.
Notre-Dame será reerguida, assim como eu. A diferença é que me custou apenas umas visitas ao psicanalista, à cartomante, umas roupinhas novas, um pouquinho de desprezo pelo sexo alheio, o que já foi perfeitamente resolvido, e levou uns três meses. Mas me trouxe algumas lições. “Nós sempre teremos Paris” é uma frase que fica bem bonita em filme. Mas algumas experiências são apenas nossas e não adianta querer dividi-las, assim como nosso afeto, nossas lembranças. Foi Paris, mas poderia ter sido Iguaba. Nunca foi uma cidade nossa, apenas minha. Está na hora de voltar e desfazer a macumba do sarcófago que criei em minha imaginação.