Som atrapalha mesa sobre som na Flip
O nome da mesa: "Som e Fúria". O primeiro elemento deixou a desejar na conversa entre o diretor de som Vasco Pimentel e a compositora Jocy de Oliveira, sábado (28), na Flip (Festival Literário Internacional de Paraty).
"Tá me ouvindo?", pergunta a mediadora do debate, Paula Scarpin, jornalista da piauí, aos convidados "conhecidos pelo rigor e pelo preciosismo", como são descritos no site do evento.
"Não", responde o lusitano Vasco, que costuma se dizer numa cruzada contra um "mundo mal remixado". A paranaense Jocy também está está muito satisfeita com a qualidade sonora na tenda principal do evento.
"A acústica tá difícil.Vai virar um pouquinho John Cage, você vai perguntar uma coisa, e eu, ouvir outra. A gente não entende bem aqui." Depois, com a conferência já finda, afirma à Folha que a dificuldade se deu sobretudo por causa do delay entre o que as pessoas falavam e ela recebia no retorno de som.
O barulho de fora também vazava para dentro do espaço, de choro de bebê a música ambiente.
Jocy tem alguma vizinhança artística com Cage (1912-1992), pioneiro em composições contemporâneas que racham o público ("esquisitão!" "gênio da raça!").
Sua performance junto a duas sopranos na abertura da Flip, após Fernanda Montenegro ler trechos de obras da Hilda Hilst, também cindiu a plateia. As vozes líricas intercaladas por frases como "mulher subjugada!" foram comparadas a "deleite para a alma" e um "animal atropelado agonizando na estrada".
Já Vasco é um sonoplasta português que trabalhou com Manoel de Oliveira, Miguel Gomes e Wim Wenders.
Jocy diz que não gosta de tachar uma música como "erudita", termo que acha "pedante e pomposo". Prefere falar em "música de criação". E ela pode, inclusive, não emitir uma nota instrumental.
O silêncio, segundo a artista conhecida pela obra "Apague Meu Spot Light" (1961), é uma ilusão. E John Cage provou isso lindamente com "4'33", 4 minutos e 33 segundos sentado à frente de um piano sem tocar uma nota.
Mas aquilo não era sinônimo de quietude completa. Com a composição, feita para ser reproduzida diante de qualquer instrumento, pode-se ouvir o barulho do coração, da pulsação, do som ao redor, das tosses na audiência.
É besteira dizer "não entendo nada" para esse tipo de obra comumente descrita como "conceitual", diz Jocy. "Bobagem, música é para ouvir. Alguém é capaz de dizer 'não entendo nada' de um Picasso, um Portinari? Duvido. Por mais que não entendam, não vão dar o braço a torcer."
O "lixo sonoro" monopoliza a trilha sonora do planeta, diz Vasco. "O que tem mais no mundo inteiro é som, e a maioria nojentamente ruim."
E o pior, segundo o português, é que dessa maldição não há como escapar. A visão, por exemplo. Não gostou da cara de alguém? Vira a sua para o outro lado, desvia o olhar para outra coisa.
Mas se uma pessoa começa, digamos, a berrar perto de você, a emitir um som desagradável, você não pode simplesmente tapar os ouvidos e cantar "lá, lá, lá", porque o gesto vai ser tomado como uma baita de uma "falta de educação".
"Por que temos a audição?", ele se questiona. Darwin explica. E Vasco explica sua teoria sobre a teoria da evolução se comparando a um "pai lagarto" que precisa proteger "os meus lagartinhos dormindo na caverna". Ele simula o urro de um predador, para risos da plateia. Se o papai réptil escutar a ameaça, vai correndo salvar sua prole.
Vasco e Jocy concordam que o mundo anda escutando mal pacas. O português acha, inclusive, que eles combinam em muita coisa. "Descobri que Jocy e eu somos duas metades da mesma pessoa."
"É verdade", ele diz diante de uma cara desconfiada da nova amiga. "Ela parte de um extremo, e eu de outro, mas ambos buscando a mesma coisa."
A certa altura, Vasco diz para o público se acalmar: é possível catar "umas pérolas" no meio de um oceano de poluição sonora. E pede que um rapaz na primeira fila assovie: taí sua pérola do dia. Logo, dezenas de pessoas estão a fazer o mesmo.
Alguém até dá um gritinho que poderia perfeitamente se encaixar numa peça contemporânea de Jocy de Oliveira.