'Somos inocentes', afirma mulher de turco preso após pedido de extradição
Usando lenço no cabelo e óculos escuros, Merve Sipahi, 31, chegou ao prédio da Justiça Federal onde seu marido iria prestar depoimento com um papel preenchido à mão com algumas frases.
“São palavras que eu não uso normalmente. Algumas eu não sei em português. Preferi escrever para não esquecer”, explicou.
Ela recitou: “Eu acredito no Brasil. Confio no Brasil. Aqui tem justiça, tem democracia. Meu marido sofre perseguição do governo turco. Ele é trabalhador, somos inocentes.”
Nascida na Turquia, Merve mora no Brasil há seis anos. Ela é casada com Ali Sipahi, preso preventivamente desde o dia 6 de abril, após o governo da Turquia pedir sua extradição.
A procuradoria de Ancara o acusa de ser membro do Hizmet —organização do clérigo muçulmano Fethullah Gülen, desafeto do presidente Recep Tayyip Erdogan e considerado terrorista por seu governo.
Sua defesa alega que ele é vítima de uma perseguição política empreendida pelo governo de Erdogan no mundo todo contra simpatizantes do Hizmet —que, segundo seus seguidores, se trata de um movimento pacífico e voltado para a educação.
A prisão do comerciante despertou temor entre imigrantes turcos que vivem no Brasil, e alguns já deixaram o país, com medo de serem o próximo alvo.
No interrogatório desta sexta (3), Ali se defendeu e disse que teme por sua vida caso seja extraditado para a Turquia, onde afirma que não terá direito a um julgamento justo.
No prédio da Justiça Federal, Merve não sabia se conseguiria ver o marido. Ficou fora da sala durante o interrogatório, mas depois da audiência acabou conversando com ele por alguns minutos.
“Pude abraçá-lo pela primeira vez em quase um mês. Foi muito bom”, disse.
Ela já tinha feito duas visitas à carceragem da Polícia Federal onde ele está preso, mas um vidro os separava e eles só podiam se falar por meio de um telefone.
Por causa disso, desistiu de levar o filho do casal, que tem quatro anos e nasceu no Brasil, para a segunda visita.
“Da primeira vez ele foi e ficou muito nervoso porque não conseguia abraçar, falar direito com o pai por causa do vidro. Achei que é um ambiente ruim para ele”, contou ela.
Tanto Ali quanto Merve são naturalizados brasileiros. A lei permite extraditar um cidadão naturalizado, desde que ele seja acusado por um crime comum (que não seja político ou de opinião) cometido antes da naturalização. Ali Sipahi se naturalizou em 2016.
A Embaixada da Turquia no Brasil não comenta o caso judicial por ser um processo em andamento, mas disse em nota que o Hizmet “se disfarçou como um movimento de educação” e “gradualmente se transformou em uma estrutura operacional sigilosa com o objetivo de transformar a sociedade, assumindo o controle do Estado turco”.
De acordo com a nota, seus membros “pretendem se infiltrar e ampliar sua influência econômica e política global” e constituem uma ameaça à segurança da Turquia e dos outros países onde operam.
“Fetullah Gülen é o líder de uma organização secreta, altamente hierárquica e antidemocrática (o chamado movimento Hizmet) que tentou o mais violento ataque terrorista da história turca na noite de 15 de julho de 2016”, diz ainda o texto.
O episódio ao qual a nota se refere foi uma tentativa frustrada de golpe, que Erdogan atribui a Gülen —exilado nos EUA, o clérigo nega.
Começou, então, um expurgo contra simpatizantes do Hizmet, que inclui, segundo a ONU e ONGs internacionais, a demissão ou prisão de centenas de milhares de juízes, professores e outros funcionários públicos, sob acusações de terrorismo.
O caso de Ali Sipahi é o primeiro do tipo no Brasil, segundo sua defesa. A família voltava de uma viagem aos Estados Unidos, onde tinha visitado Nova York, Miami e a Disney World em Orlando, quando Ali foi detido pela Polícia Federal no aeroporto de Guarulhos.
Merve diz que eles não sabiam que existia um pedido de prisão contra ele.
“Eu não entendi nada”, afirmou. “Como pode ele ser preso se aqui tem democracia, tem justiça? Fomos passear por 14 dias e voltamos porque moramos aqui. Somos brasileiros.”
Merve e Ali se conheceram na Turquia, por meio de uma amiga em comum. Casaram-se em 2013 e pouco depois vieram para São Paulo, onde ele cursou Letras e morava desde 2007.
No Brasil, Ali trabalhou como tradutor, organizador de atividades de intercâmbio entre empresários turcos e brasileiros, motorista do aplicativo Uber e hoje tem um restaurante de comida turca que possui três unidades e 22 funcionários.
No depoimento, ele disse que começou com um pequeno investimento junto com dois amigos.
“Fiquei oito meses no caixa porque não tínhamos como pagar alguém. Trabalhei sem parar por três anos. Graças a Deus, deu certo”, contou.
Professora de matemática de formação, Merve atualmente não trabalha, mas um dia quer voltar a dar aulas particulares, como fazia na Turquia.
Ela disse que tem recebido o apoio de amigos brasileiros desde a prisão de Ali.
“Eles me ligam e perguntam: como você está, como está seu filho, vocês precisam de alguma coisa? Todo mundo gosta do meu marido, ele é uma pessoa muito boa, trabalhadora. Nós gostamos do Brasil. Não fizemos nada de errado”, afirmou.
No interrogatório de sexta, Ali Sipahi disse que teme por sua vida caso seja enviado de volta para a Turquia e que não terá direito a um julgamento justo no país. Ele afirmou ainda que se considera um preso político.
“[Na Turquia] As decisões [judiciais] já estão tomadas. Temo pela minha vida. Lá tem torturas, eletrochoque, violações sexuais. Não sei o que vou enfrentar”, afirmou.
“Ele é um perseguido político do governo Erdogan”, disse seu advogado, Theo Dias. “É um comerciante, uma pessoa com vida absolutamente normal e que foi escolhido entre todos os outros simpatizantes do Hizmet que vivem no Brasil.”