Sou Lula Livre, mas não necessariamente para votar nele, diz Gilberto Gil

Canção que dá título ao novo disco de Gilberto Gil, "Ok Ok Ok" é ao mesmo sintoma do atual clima de desencanto, denúncia da busca por um salvacionismo mágico e manifesto contra a intolerância que tem dividido os brasileiros.

"Ainda que você se posicione de forma mais permanente sobre qualquer coisa, a realidade está caminhando mais rápido. O posicionamento é uma parada. Você para, e a realidade atropela você", diz o cantor e compositor sobre questão que, para ele, é agravada no período eleitoral.

"A eleição é a solicitação de um posicionamento. Temos de escolher o que aceitar. Por isso é tão difícil."

Artista seminal da música popular brasileira, Gil, 76, começou seu flerte com a política em 1988, quando se elegeu vereador de Salvador pelo PMDB. Foi ministro da Cultura dos primeiro governo Lula e de parte do segundo mandato do petista (2003-2008), motivo pelo qual foi chamado pelo juiz Sergio Moro para depor nos processos contra o ex-presidente.

"Tinha que dizer a verdade. Perguntado pelo juiz Sergio Moro, respondi o que me cabia dizer: o que eu sabia."

Seu histórico recente como eleitor nos pleitos presidenciais: votou duas vezes em Fernando Henrique Cardoso (PSDB), duas vezes em Lula (PT) e duas vezes em Marina Silva (Rede).

Neste ano, no entanto, diante do que chama de "ameaçadora candidatura ultra reacionária e retrógrada", Gil se prepara para fazer voto útil, ainda que desejasse renovar o investimento na candidata que já foi de seu partido, o Verde. Marina disputou pela sigla em 2010.

Lamenta mesmo é que haja tantas candidaturas separadas à esquerda: Marina, Ciro (PDT), Boulos (PSOL) e, provavelmente, Haddad (PT). "Eu sinto que mais uma vez não seja possível a união das forças progressistas contra o atraso." O motivo da falta de coesão? Para Gil, "ego partidário, ego pessoal".

A letra de "Ok Ok Ok" trata de uma "vil situação", de um "coro irado" e da busca de um herói que "resolva tudo".

Em outro trecho, Gil trata de certo incômodo com a constante demanda para que ele se manifeste sobre tudo. No caso desta entrevista, a demanda, mais restrita, foi aceita.

 

De qual vil situação você fala na música "Ok Ok Ok"? De todas aquelas em que estamos envolvidos nas nossas vidas. Especialmente as que dizem respeito ao conhecimento de todos, ao social, ao nosso país, ao mundo, à sociedade. São as dificuldades pelas quais passamos. Essa queixa permanente da sociedade, mais intensa em alguns lugares, como no Brasil, do que em outros. Essa é a vil situação: é o fato de não podemos viver uma situação celestial. Tem sempre um pouco de inferno e de purgatório na vida de todos.

A letra parece tratar do desencanto que vivemos atualmente no Brasil... É a tradição poética, metafórica, de muitas situações em que nos sentimos envolvidos como sociedade e como indivíduos.

Por exemplo? Não existe um exemplo propriamente. É a vil situação. É a dificuldade permanente, e crescente que vivemos. Tudo é exemplo. É como eu digo no final da música: "As palavras dizem sim, os fatos dizem não". Os fatos estão negando o tempo todo qualquer posicionamento mais permanente, mais fixo, mais nítido que você possa ter em relação a qualquer coisa. Ainda que você se posicione, a realidade está caminhando muito mais rápido do que qualquer posicionamentos. Posicionamentos são paradas. Você para, a realidade atropela, empurra você.

Você se sente atropelado pelo quê? Por tudo. Tudo o que é motivo de instabilidade, insatisfação, dúvida sobre o futuro, dificuldade de acesso aos meios básicos. Mas uma música como essa não é pessoal, individual, mas um sentimento difuso, que pode estar nítido para alguns, mas não para outros.

O próprio sofrer dos pobres, a que me refiro na letra, não é uma questão pessoal, por exemplo. A penúria que o pobre vive, eu não vivo, mas estou solidário a ela. É uma canção sobre este sentido social permanente a que somos obrigados a dar a nossa vida. Vivemos em sociedade e o outro faz parte de nós.

Por que é difícil enxergarmos a nós e ao outro como parte de um mesmo coletivo? As polarizações e os funcionamentos muito específicos em relação aos interesses podem obliterar a visão do todo, dos outros. A compreensão, a caridade e perdão ficam difíceis de exercer.

Como isso se articula no período eleitoral? A dificuldade é maior ainda porque a vida está solicitando de nós um posicionamento. Eleição é isso: se posicionar em relação a candidatos, programas, intenções, visões de presente e de futuro representadas pelos candidatos. O grande problema é ter de escolher.

A vida ideal era aquela em que não tivéssemos que escolher nada. Os mestres religiosos e os mestres filósofos reiteram isso: deixe a vida te levar, venha o que venha. A hora em que somos exigidos a fazer escolhas, como numa eleição, é a hora em que temos de negar essa magnitude do coração para aceitar tudo. Temos de escolher o que aceitar.

Sua música é dúbia em relação a seu desejo de se manifestar publicamente. O seu pedido é para ser ou não procurado? Talvez o pedido seja para não ter a obrigação de dar opinião sobre tudo o tempo todo. Não que você não tenha opiniões. Tem muitas, e às vezes até contraditórias. Mas essa exigência de que você opine e seja uma espécie de agente realizador do desejo e da esperança de todos incomoda. Essa coisa de salvador ou herói.

No campo da política, o Brasil parece fadado ao sebastianismo, à ilusão de que um indivíduo nos salve de nossas mazelas... Encontrar em pessoas ou em instituições a boia de salvação neste oceano tenebroso em que a gente vive faz parte da nossa herança ibérica, católica, lusitana. Temos essa tendência a um desejo de que uma pessoa ou uma instituição seja nossa salvação.

Na polarização atual, há quem veja este herói salvador em Lula e há quem o veja em Bolsonaro. Exatamente! (risos) Esta dicotomia é sinônimo da dilaceração de hoje e da dificuldade de aceitação do todo a partir da necessidade de escolher entre uma coisa e outra. Uns escolhem Bolsonaro, outros, Lula.

Como um exilado político da ditadura militar assiste à ascensão de uma figura que enaltece este período, como Bolsonaro? Vejo com certo temor. Mas, ao mesmo tempo, tenho 76 anos e já vivi muita coisa. Por exemplo, eu presenciei a ascensão do primeiro grande núcleo do que se chama hoje de extrema direita, com [John] Enoch Powell [1912-1998], na Inglaterra. Depois vieram muitos outros, como Le Pen, na França.

Eu fico receoso que esses corações dessas pessoas não compreendam que é preciso ter piedade, perdão, caridade, solidariedade, que é preciso estarmos juntos e que a vida é para todos, apesar das diferenças entre nós. Que temos de produzir a igualdade na diferença.

E como você avalia a situação de Lula? Uma coisa é ele como pessoa, por quem eu tenho um sentimento de pesar por tudo o que está acontecendo com ele.

Outra coisa é a figura política e suas estratégias no campo da luta. E aí, é uma opção dele. Eu tenho minhas dúvidas se as estratégias adotadas estão corretas e vão levar a um desfecho segundo as expectativas dele. Não sei.

Você fala sobre a delonga em definir Haddad como seu substituto? Sim. Gosto muito de Haddad. É um nome interessante. Um homem muito preparado e sensível. Suficientemente jovem e suficientemente maduro ao mesmo tempo para ter uma compreensão do conjunto da sociedade brasileira hoje, da inserção do Brasil no mundo, da questão da economia. Acho ele muito preparado, assim como acho Ciro [Gomes] muito preparado. E Marina, em quem já votei para presidente por duas vezes, também é muito bem preparada e posta.

É falsa a impressão de que você, por ter sido ministro do governo Lula, vota no PT? É falsa! Quando eu fui num show do Lula Livre, evento aqui no Rio de Janeiro em prol da libertação dele, disse que, diferentemente de muitos que querem Lula solto para votar nele, eu necessariamente não quero ele livre por isso.

Eu acho que Lula deve ser solto porque sua prisão é injusta em vários aspectos. E, neste sentido, ele deveria estar aí, como nós, vivendo a plenitude das lutas partidárias e das disputas democráticas, coisa que ele está impedido de fazer. Sou Lula Livre, mas não necessariamente para votar nele.

Por que acha a prisão de Lula injusta? São muitos os que assim a consideram: juristas —daqui e de outros cantos do mundo—, cronistas políticos, milhões de eleitores. Eu não estou sozinho, muito pelo contrário.

Falta autocrítica ao PT? Acho que sim. Um pouco. E a Lula, na medida em que poderia ter levado o partido a uma posição mais de explicação sobre suas questões, problemas e erros.

Você sempre se alinhou à esquerda, campo em que há ao menos quatro candidatos à presidência. Como se posiciona entre tantas opções? Eu sinto um certo pesar de eles todos não estarem juntos num momento como esse, em que tudo o que significa a negação do que eles representam está lá, fortalecido, do outro lado. Eu sinto que mais uma vez não seja possível a união das forças progressistas contra o atraso.

Por que essa união não acontece? Não sei. Talvez o extremo zelo que cada um tenha por suas facções, por suas representações partidárias, por seus partidos, por seus traços ideológicos especiais. Mas numa hora em que se vê o contrário de tudo isso se avolumando na sua frente, acho que a gente deveria se abraçar.

Essa é uma questão que não é de hoje. Há muito tempo ouço isso: por que não se unem? Lembro de uma época em que era tema permanente nos círculos intelectuais e artísticos no Brasil a interrogação: Por que o PSDB e o PT não se unem definitivamente já que são ambos partidos com forte compromisso social e forte compromisso democrático? Mas, aí, são as pessoas"¦ Tem aquilo que a gente comumente chama de ego (risos). Ego partidário, ego pessoal.

Votará em Marina novamente? As últimas duas eleições presidenciais foram bem diferentes desta que se aproxima. Não havia então uma ameaçadora candidatura ultrarreacionária e retrógrada como há agora. Tínhamos relativo conforto em escolher, no primeiro turno, o candidato que quiséssemos. Agora é diferente: a polarização extremada exige o voto útil logo de cara. Há poucos dias, Marina me telefonou. Eu disse a ela que estou aguardando para ver quem do nosso campo progressista tem mais chances de ir ao segundo turno. Então, definirei meu voto. Ela compreendeu.

E se um dos candidatos da sua simpatia for eleito e o convidar para ser ministro da Cultura novamente? Não quero mais. Já foi um esforço enorme e uma aventura, no sentido pessoal, ter feito aquele trabalho com o presidente Lula e tantos ministros com quem tive que me relacionar e colaborar. Agora não quero mais. Não dá.

Sobre Otavio Frias Filho (1957-2018) O cantor comentou ainda a morte do diretor de Redação da Folha: "É surprendente e mesmo admirável que um gestor-proprietário de um jornal se refugie no fundo do grande palco do seu mundo editorial. Fica lá, longe dos holofotes, vive o tráfego vertiginoso das notícias e da informação, toma conta de tudo e quase não aparece. Isso é frequente nas empresas jornalísticas. Otavio Frias Filho é um caso radical desse fenômeno: o seu jornal tão grande e ele uma formiguinha que a gente quase não via. Deixava que a sua grandeza aparecesse como um leve reflexos naquelas páginas enormes! Nosso muito obrigado"

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