Temor eleitoral e politização marcam filmes da Mostra de Cinema de SP
As eleições insuflam uma névoa de paranoia sobre uma fazenda gaúcha. Ali, entre espetos de carneiro e taças de espumante, a matriarca espezinha o caseiro, o filho de meia-idade pratica tiro ao alvo e o neto adolescente quer deflorar a filha da empregada. Esperam aturdidos a posse do novo presidente, a sacudir aquele mundinho.
“Domingo”, drama dirigido por Fellipe Barbosa e Clara Linhart, ganhará um timing curioso ao estrear no Brasil durante a Mostra de São Paulo, que começa nesta quinta-feira. Embora o longa trate de outro pleito, o que levou Lula ao Planalto em 2003, é impossível assistir a ele sem pensar em Haddad e Bolsonaro.
O filme engrossa uma seleção de mais de 300 filmes, boa parte carregada de voltagem política. “Não tinha como ser diferente”, diz Renata de Almeida, diretora do festival paulistano. “O cinema tem algo de jornalístico e reflete o que está acontecendo no mundo todo.”
A primeira versão do roteiro de “Domingo” foi escrita por Lucas Paraizo em 2005, na euforia do primeiro mandato do presidente petista.
“De lá para cá, sempre que essa história era retomada, ganhava um significado distinto por causa do momento político do país”, diz Linhart. “Quando filmamos, em 2017, não imaginávamos que ele seria lançado em uma hora tão conturbada.”
Os motes do filme são atemporais, pincelados com certo olhar freyriano sobre as relações entre elite e proletariado (não à toa, Fellipe Barbosa lançou em 2014 um drama social com o sugestivo nome de “Casa Grande”).
Em “Domingo”, patrões e empregados jantam em ambientes separados –os primeiros temem “a invasão dos sem-terra que está por vir”, os outros ouvem com alento o discurso de posse de Lula em televisõezinhas perto da tábua de passar roupas.
“A família de patrões representa um Brasil reacionário e profundo”, segundo a diretora. “O pânico que sentem, como o pânico que existe hoje, é reflexo do fosso social que o país não conseguiu resolver.” Na França, onde o filme já estreou, a imprensa aborda a ascensão do direitista Bolsonaro para discutir o longa.
O diretor Jorge Furtado é outro que comparece à Mostra com um filme com ressonância política. “Rasga Coração” é uma adaptação da peça homônima de Oduvaldo Vianna Filho, escrita na ditadura militar, atualizada com o contexto das manifestações de junho de 2013.
Mais conhecido pelos cômicos “O Homem que Copiava”, de 2003, e “Meu Tio Matou um Cara”, do ano seguinte, o diretor gaúcho afirma que “fazer chorar no Brasil hoje é bem simples”. “Talvez seja mais difícil fazer comédia agora”, diz.
Nesse novo drama de Furtado, Marco Ricca vive um ex-militante de esquerda confrontado pelo filho, interpretado por Chay Suede, que não crê na política tradicional. A cisão dentro da ala progressista, que tanto tem pautado a eleição presidencial, reverbera nos debates entre os personagens.
Até o vulto de Karl Marx, que vez ou outra é desancado em grupos de WhatsApp e afins, dá as caras com a homenagem que o festival paulistano faz aos 200 anos de seu nascimento. Trazer o nome dele numa era de debates tão superficiais soa quase como uma heresia. “Mas não precisa ser marxista para reconhecer a importância da visão dele”, afirma a organizadora da Mostra.
“Marx Reloaded” é um documentário que mistura animação e entrevistas para examinar a crise econômica de 2008 à luz das ideias do pensador alemão. “Um Dia na Sepultura de Karl Marx” tenta fazer um panorama de suas propostas a partir das visões daqueles que visitam seu túmulo, em Londres.
Já o diretor Alexander Kluge aplica o ideário marxista sob a chave da ficção em “Trabalhos Ocasionais de uma Escrava”, a respeito de uma mãe que faz jornada dupla e se engaja em lutas sociais.
Do israelense Amos Gitai, o festival paulistano exibe dois filmes, entre eles o documentário “Uma Carta para um Amigo em Gaza”, que remexe no vespeiro da autonomia palestina e da facção radical Hamas a partir da obra de Albert Camus.
Donald Trump e a América de tensão racial cada vez mais aguda são evocados em “Infiltrado na Klan”, novo filme de Spike Lee.
A trama dessa dramédia remexe a investigação conduzida por um policial negro que nos anos 1970 conseguiu se enfiar entre os membros da organização racista Ku Klux Klan. O diretor costura um fio narrativo entre a seita e a omissão do presidente republicano diante da marcha de supremacistas brancos em Charlottesville.
Se nas telas os cineastas expelem suas visões políticas, outros pagam por elas nos bastidores. Ambos impedidos de deixar seus países de origem, o iraniano Jafar Panahi e o russo Kirill Serebrennikov têm seus dois filmes mais recentes na programação da Mostra de São Paulo.
Filmado em segredo, “3 Faces” é um retrato do provincianismo e do machismo no Oriente Médio que se desenrola a partir da história de uma garota proibida pelos pais de seguir na carreira de atriz. Panahi é um notório crítico ao regime iraniano e foi condenado a ficar 20 anos sem filmar.
Já “Verão”, do diretor russo, trata de uma banda de rock que irrompeu na atual São Petersburgo durante décadas derradeiras da União Soviética. Embora Serebrennikov cumpra pena de prisão por crime fiscal, há quem veja motivação política em seu encarceramento graças às posições do cineasta, contrário à anexação da Crimeia e a favor de direitos LGBT no país.
42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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