Tensão cerca manifestação que deve reunir milhares de indígenas em Brasília
Maior manifestação indígena do país, o ATL (Acampamento Terra Livre) de Brasília ocorrerá neste ano em uma atmosfera de tensão, segundo os indígenas criada por acusações do presidente Jair Bolsonaro e pela decisão dos ministros Sérgio Moro (Justiça) e Augusto Heleno (GSI) de convocarem, por uma portaria, a Força Nacional para atuar na segurança na Esplanada dos Ministérios.
Líderes indígenas ouvidos pela Folha dizem que têm receio de situações serem provocadas por infiltrados a fim de caracterizar os indígenas como violentos.
Nos grupos de aplicativos de telefone celular, os organizadores do ATL têm reforçado o discurso de “uma luta pacífica para dar visibilidade aos nossos direitos” e procurado acalmar os ânimos a fim de evitar confrontos na Esplanada.
O esforço é dificultado pela falta de canais de diálogo dos indígenas com o governo, já que o órgão de interlocução indigenista, a Funai, tem sido sistematicamente esvaziado de suas funções e poderes desde janeiro.
Até esta terça-feira (23), um dia antes do início do acampamento, não havia sido agendada nenhuma reunião entre líderes indígenas e autoridades do primeiro escalão do governo —estão previstas audiências no Supremo Tribunal Federal e na Câmara dos Deputados, mas não no Executivo.
O encontro ocorrerá de quarta-feira (24) a sexta-feira (26), e os organizadores trabalham com uma estimativa de 4.000 indígenas.
“Estamos muito receosos sobre como vamos ser recebidos em Brasília. Essa portaria [de convocação da Força Nacional] é uma ameaça contra os nossos direitos indígenas. Demonstra a postura do governo em relação aos indígenas”, disse o índio wapichana Mário Nicácio, do CIR (Conselho Indígena de Roraima), um dos organizadores do evento.
Nesta terça-feira, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Santos Cruz, afirmou à Folha que o governo conversa com indígenas, mas incluiu a expressão “sem intermediários”, o que foi interpretado por líderes indígenas e indigenistas como mais um gesto para dividir o movimento indígena, ao tentar excluir representantes indígenas de negociações com o governo.
Na semana passada, o governo caminhou para esse mesmo sentido quando Bolsonaro recebeu no Palácio do Planalto um grupo de indígenas levados por Santos Cruz e pelo ruralista Nabhan Garcia, hoje secretário de Política Agrária do Ministério da Agricultura. Bolsonaro fez uma live em redes sociais sobre o encontro, no qual aparece conversando, por exemplo, com o yanomami Timóteo, e faz acusações a ONGs.
Um dia depois, líderes yanomami como Davi Kopenawa tiveram que gravar um vídeo e divulgar uma nota para dizer que os índios "não são crianças, somos lideranças e representantes do povo e não estamos sendo manipulados pelas ONGs. Sabemos quem são nossos parceiros, desde antes de a terra ser demarcada eles estavam do nosso lado".
"O objetivo do governo é dividir os povos indígenas e a opinião pública. Assim que vimos”, disse Mário Nicácio.
Ainda não está definido o local do acampamento em Brasília, mas os indígenas pretendem se instalar na Esplanada em locais já usados em anos anteriores. Uma negativa do governo do DF sobre o local deverá gerar um novo foco de tensão.
Nos últimos dias circularam boatos de que ônibus que trarão os indígenas serão barrados pela polícia nas rodovias de acesso ao Plano Piloto —a Folha indagou a esse respeito à Secretaria de Segurança Pública. O órgão respondeu apenas que "atuará, por meio das forças de segurança e do Centro Integrado de Operações de Brasília (CIOB), no monitoramento e eventual atendimento às atividades relativas ao movimento Terra Livre".
O clima de apreensão aumentou porque os indígenas se sentiram ofendidos por recentes movimentos da cúpula do governo Bolsonaro.
Há duas semanas, em outra live em rede social, o próprio presidente acusou “10 mil” indígenas de virem a Brasília com recursos públicos, o que é negado veementemente pela principal responsável pelo evento desde 2004, a Apib (Articulação dos Povos indígenas do Brasil), que reúne as maiores organizações não governamentais indígenas do país.
Em nota, o ATL afirmou que as acusações do presidente são infundadas e todas as despesas são custeadas entre os próprios indígenas e apoiadores da sociedade civil.
Além disso, os organizadores consideram que Bolsonaro inflou propositalmente o número para “10 mil” com o objetivo de dizer que o protesto fracassou caso o número seja menor.
A Folha acompanha a organização do evento desde março e em nenhum momento o número de 10 mil foi mencionado. Também nunca, desde o início do ATL em 2004, reuniu-se tal número de indígenas em Brasília. Os números que a reportagem ouviu ao longo das semanas oscilaram de 2.000 a 3.000 —agora os organizadores acham que podem chegar a 4.000.
Os recentes movimentos da cúpula do governo Bolsonaro se juntam a uma série de medidas do seu governo inéditas desde a redemocratização, em 1985, todas no sentido, segundo os indígenas e indigenistas, de restringir direitos previstos na Constituição de 1988.
As principais foram a retirada da competência sobre a demarcação de terras indígenas da Funai (Fundação Nacional do Índio) para a Agricultura, a submissão do tema a ruralistas, históricos adversários dos indígenas em vários estados, a transferência da Funai do Ministério da Justiça para o da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela pastora evangélica Damares Alves, ameaças de mudança na política da saúde indígena e a extinção da participação de médicos cubanos no programa Mais Médicos, o que impactou diretamente diversas aldeias que contavam com o trabalho desses profissionais. Essas são as principais bandeiras do ATL deste ano.
Os organizadores do ATL temem a infiltração de pessoas com objetivo de fomentar atos de violência, criminalizar os indígenas e provocar detenções.
Foi criado um “plantão jurídico” para impedir que a Força Nacional e a Polícia Militar façam detenções ilegais ou que impeçam a livre manifestação dos indígenas. Em mensagens distribuídas aos manifestantes em aplicativos de telefone, os organizadores advertem que os indígenas não podem ser proibidos de "fazer nossos protestos de forma pacífica".
Os organizadores também orientam os indígenas a gravar vídeos sobre eventuais atritos com as forças de segurança e a tomar cuidado com as armas de baixa letalidade, como balas de borracha e bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo.
"A polícia não costuma ter preparo para lidar com multidões e, se não fizer uso correto delas, poderá causar sérios ferimentos, mutilações e até mesmo levar a morte", diz a mensagem distribuída aos indígenas.